Introdução
“Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
Mas nem por isso somos infelizes”
(Alexandre O ́Neill)
Este trabalho pretende analisar o filme Belarmino, de 1964, com realização de Fernando Lopes e produção de Cunha Telles, no que ficou conhecido como o Primeiro Período do Cinema Novo (ou Novo Cinema) Português – que delimita-se entre os anos de 1963 e 1966.
A análise comportará duas componentes centrais: primeiramente destacando as inovações que esta obra apresentou dentro do contexto cinematográfico português; e procurando compreender como a autoralidade cinematográfica adquire contornos políticos nesse documentário realizado durante a vigência do Estado Novo português, na figura de Marcello Caetano (1968-1974), sucessor de Salazar.
Belarmino e o Cinema Novo – Novo Cinema
No contexto do Cinema Novo Português, a obra de Fernando Lopes é detentora de grande parte daquilo que se atribui como “o novo” cinematográfico, isto é, se o movimento a que se chama Cinema Novo (a obra desta geração e das que se seguem, em um movimento que ainda não tem muito definido seus contornos de encerramento) é marcado por algumas características fundamentais – a origem no cineclubismo, a crítica profissional, a escolarização dos realizadores e a noção de autoralidade – constatamos que é possível encontrar todas essas características na obra e no realizador tema deste trabalho.
Fernando Lopes inicia seu ofício no cinema com sua adesão ao cineclube Imagem e, após um período trabalhando para a televisão (a recém inaugurada RTP2), estuda cinema – como bolseiro do governo – em Londres. Inicia, em seu regresso, sua produção cinematográfica (marcadamente autoral e de produção até certo ponto artesanal, fugindo da “tradição da qualidade” francesa que dominava a cinematografia portuguesa), alem de dirigir a revista especializada Cinéfilo[1]. Nessa breve biografia, percebemos que Lopes preenche todos os pontos necessários para ser um Homem Novo deste novo cinema.
A transição do Cinema Velho para o Cinema Novo traz como bastião maior o grande deslocamento da figura do ator para a figura do diretor, detentor do discurso e responsável intelectual pela obra criada; além da explícita ruptura com os mecanismos de produção, Belarmino, nas mãos do produtor Antônio da Cunha Telles, anterior à criação da agência financiadora Calouste Gulbenkian, procura por formatos auto-financiadores similares aos utilizados em Dom Roberto, de José Ernesto de Sousa (1962): enquanto Sousa buscava o financiamento para a produção nos futuros espectadores, Lopes vai ingressar nas cooperativa cinematográficas, onde uma força tarefa de realizadores se auto-financiava, em regime de rotatividade.
A parte dessa inovação mercadológica que regerá a generalidade dos filmes cinema novistas portugueses, percebemos a presença que, em Belarmino, alguns daqueles aspectos definidores da estética do Cinema Novo, como a influência da escolarização e a autoria, são bastante determinantes para que esta seja uma obra realmente inovadora no panorama fílmico português: as influências externas se fazem presentes, na figura do produtor Cunha Telles que, tendo estudado na França, tinha referências muito nítidas da nouvelle vague; e o próprio Lopes, formado em Londres, que trazia influências[2] do novo documentário britânico – o free cinema.
Ambas as referências escolares são extremamente nítidas em Belarmino: o retrato do Homem moderno, a desconstrução e exposição da antes pretendida unidade e transparência fílmica – características da nova vaga francesa – são partes estruturantes desta obra (com a clara dissociação entre as imagens visual e sonora[3], a utilização de fotogramas congelados que interrompem a fluidez esperada da imagem em movimento, a supressão sonora); e as diretrizes do free cinema, corrente documental britânica que veio desconstruir a herança do documentário institucional[4] de John Grierson (cujos contornos se definiram no decorrer da década de 1930), se apresentam na utilização dos mecanismos ficcionais para a construção de um filme documental.
No que se refere à noção de autoria[5] Belarmino é um caso realmente específico, já que Fernando Lopes traz para si a responsabilidade ética e estética da obra, mas é inegável que para construir esta biografia de Belarmino Fragoso – que funciona como biografia de uma geração e de uma nação – também se construíram, no decorrer do filme, as biografias do diretor de fotografia Augusto Cabrita e do diretor de som Manuel Jorge Veloso que tiveram participações marcadamente autorais. Isto é, a postura política da geração do cinema novo constrói uma linha direta entre a obra de arte e o autor – artista – (em mais um claro momento de legitimação do Cinema enquanto Arte), mas no caso específico de Belarmino há a presença e afirmação de diversos artistas: o maestro Lopes orquestrando a execução da imagem de Cabrita, da música e sonorização de Veloso e da arte do boxe e oratória de Fragoso. Estando todas estas figuras extremamente ligadas ao tema e ao discurso inter-textual, o retrato de um tempo que ali se construía.
Esta confluência de “auto-biografias” aparece como uma clara evidência da forma como, no documentário contemporâneo, há a ocultação de um eu atrás de um ele. Belarmino Fragoso é o corpo performático que condensa – e até mesmo alegoriza – diversos eus infilmáveis: eus autorais, afirmativos e, principalmente, memoriais. É através de um corpo que se condensa uma memória geracional, que se permite a tentativa de “impessoalizar” o discurso[6].
Outra inovação que Belarmino trouxe para a cinematografia portuguesa foi o mecanismo de construção narrativa, isto é, se o cinema velho estava muito atrelado às adaptações de cânones literários, o cinema novo trouxe os roteiros originais. E a construção do roteiro de Belarmino se deu de uma maneira bastante específica – parte por tratar-se de um “documentário biográfico”, mas sua especificidade se deve, principalmente, ao conjunto de decisões de seu autor que poderia ter optado, por exemplo, por construir um argumento estruturando os pontos a serem tratados previamente -, isto é, em Belarmino não houve a definição prévia de um argumento, este somente se delineou após uma primeira longuíssima entrevista com Belarmino Fragoso, dirigida pelo jornalista Baptista Bastos, cujo material funcionou como pré- montagem do filme, um esqueleto que permitiu definir o caminho de condução do filme.
E deste esqueleto surgiu um caminho prodigioso: de acordo com os nomes chamados à ribalta, o mesmo Baptista-Bastos ia buscar o “outro lado da história” e com esses diferentes pontos de vista, Lopes pôde – na montagem – forjar um diálogo e duelo de discursos entre Belarmino e seu ménager Albano Martins (unindo tempos e espaços com o artifício do plano e contra-plano). E, se Belarmino “era muito bom na arte da esquiva”[7], o realizador pôde investigar e alinhavar todos os despistes do pugilista, os literais (encaminhando a narrativa fílmica[8] para um ou outro caminho) e os metafóricos (com o corpo dançante de Belarmino preenchendo o ecrã). Assim, o cinema de Lopes abandonava os filmes culturais do cinema velho, produzindo uma genuína obra “cultural e social do povo português”[9] através do cinema.
E essa narrativa construída no rastro de despistes e falácias proferidas em tom inocente, exigiu do realizador uma lucidez e candura para desconstruir de maneira legítima a mentira dita com mentiras audiovisuais[10] (construindo um “Homem visível”[11]), a partir de uma montagem que em diversos momentos funde argumentos que ora se validam, ora se invalidam. Procurando exibir um Belarmino público – na figura do pugilista – e privado – em sua história de vida e nos momentos de reunião familiar. Mas era inevitável que esses dois Berlaminos se mesclassem, e esta mistura se dá justamente nesta longa entrevista que pontua e “comenta” o filme todo: a oratória de Belarmino corrompe minuciosamente a sua própria história, seus verbos não condizem com os do seu corpo.
Ele é sabatinado pelo inquérito de uma voz off, cujo dono – o jornalista Baptista-Bastos – jamais mostra o rosto e, sendo a mesma voz que introduz Belarmino no início do filme, poderia sugerir o clássico narrador dos documentários expositivos. Mas aqui, a voz se dirige a Belarmino, buscando não permitir que sua verborragia de historietas e simpatia desvirtue a História, tentativa que obviamente é falhada.
As palavras de Belarmino são lisas, difíceis de apanhar, tal como seu corpo que tanto atraiu Lopes por “andar como um bailarino” pelas ruas lisboetas, fazendo-o lembrar os atores do cinema norte-americano. Uma espécie de figura etérea que fazia do ringue seu ganha-pão e das ruas de Lisboa seu ringue maior. As palavras e o corpo de Belarmino podiam se antagonizar nos fatos, mas no estilo estavam completamente irmanados: as esquivas e a leveza, a dança do combate, eram as bases de ambos.
E Lopes parece perseguir não somente as referências do texto ou do corpo de Fragoso – ora indo ao encontro do ménager ou seguindo o pugilista pelas ruas e cafés -, mas também perseguindo seu estilo escorregadio: as inúmeras inserções de fotogramas congelados[12] parecem servir como pontuações, como as pequenas frases que Belarmino utiliza sistematicamente durante seu discurso que nenhuma outra função têm além de pontuar, criar um intervalo para o pensamento (como, por exemplo, a frase mais recorrente “São coisas da vida”). Mas, tenha sido ou não uma transformação imagética de mais um aspecto da oratória de Fragoso, a inserção das fotografias tem um efeito inevitável: nos faz lembrar que aqui é cinema, é imagem e representação.
Outro aspecto muito trabalhado em Belarmino é o som, com diversos momentos de dessincronização com a imagem. Uma construção elaborada dos ruídos nos momentos de treino e de luta[13], dos sons da cidade e diversos momentos de silêncio absoluto, que reiteram a fratura entre imagem e som, as narrativas independentes. E a música também constrói um discurso independente, com a utilização inaugural do jazz[14] no cinema português. E a forma de inserção também é variada: diegética nas cenas que ocorrem no Hot Club e extra-diegética no genérico e em alguns momentos de deambulação pelas ruas de Lisboa.
Mas, certamente, o momento onde a música é utilizada com mais relações é na última cena da vida boêmia de Fragoso, onde temos a música jazz se derramando do Hot Club, uma casa de shows mais burguesa e intelectual, para o cabaré (Ritz Club) onde Belarmino dança um tango – juntamente com o casal formado pelo saxofonista e a rapariga dos óculos escuros. A música jazz unindo e igualando os cidadãos de classes sociais distintas, sob a luz de uma mesma Lisboa, como haveria de querer toda uma geração oprimida por um sistema anti-democrático.
Da Política e das Fronteiras
O lema maior do regime Salazarista-Marcelista circundava a ideia de manutenção e perpetuação daqueles que seriam os pilares desenvolvimentistas de uma sociedade: “Deus, Pátria e Família”. A figura de Belarmino Fragoso notoriamente não ignora a força da cultura católica em territórios lusos (vide a infinidade de vezes que Fragoso repete “graças a Deus”); mas sutilmente questiona a estrutura familiar, com a sugestão da infidelidade do pugilista e sua afirmação categórica de que poderia ser visto com vagabundos ou prostitutas, já que vivia a cidade.
Porém, o ponto de choque aqui se dá na questão da pátria portuguesa (e, provavelmente, o apelo afetivo desta biografia tenha impedido que o órgão censor – PIDE – se impusesse contra a obra). Fragoso afirma e reitera a ideia de que se fosse um pugilista-artista em outras terras teria tido sucesso, que o pugilismo não era valorizado em terras lusas. Aqui o discurso se expande: através do estilo retórico de Fragoso que afirma que “trabalha com a arte do boxe”, podemos perceber a intelectualidade portuguesa fazendo suas as palavras do pugilista, dizendo que para eles também não havia terreno fértil – democracia e liberdade de expressão necessárias para o fazer artístico.
Poderíamos visualizar nessa tomada de decisão uma atitude combativa, espécie de reviralhismo[15] desarmado, uma insurgência que exibia, através de uma narrativa delineada pelo espaço da cidade e um homem que nela deambula, uma forma de se fazer crente no futuro, porém consciente do presente.
Essa combatividade se dá em diversos níveis: no plano do financiamento da produção que traz em si a coletividade – em um momento que quaisquer agrupamentos eram considerados, à priori, suspeitos –, no lugar do processo “industrial” do cinema estatal que previa a individualidade instrumental, cada agente atuando em sua especificidade técnica. No plano temático, com o claro afastamento dos cânones literários e acadêmicos, no mergulho na rua e no povo (através de uma figura popular), como que para fugir da instituição que havia produzido o pai austero da nação, o professor catedrático da Universidade de Coimbra, Salazar.
E, no plano estético que se desdobra em combatividade percebida através de uma atitude política estetizante, ou poética, com os planos encenados: a luta no ringue que é filmada com o posicionamento da câmera bastante próxima às cordas o que recorta o plano, enjaulando um homem do povo, um bastião da persistência e do trabalho; ou ainda no plano de abertura, onde vemos Belarmino correndo na direção da câmera – em direção a nós -, saído de um túnel obscuro. E também na confluência de estilos extra-nacionais em um momento de política ufanista, através da fusão das influências britânica – com o free cinema -, francesa – com a nouvelle vague e italiana – com o rastro do neorrealismo que perdurava enquanto forma eficiente de se fazer engajado.
Se pensarmos nessa fusão de estilos, pecebemos que a modernidade alcançada por Lopes é realmente genuína e anti-sistemática pois, apesar de Belarmino ser indexado como um documentário, ou um novo-documentário, ou ainda uma expressão aproximada do cinema verdade[16] (ou cinema direto), por possuir um argumento com bases na realidade e atores sociais, essas definições – que apesar de sugerirem uma certa hibridez entre registro documental e trabalho ficcional – são bastante restritivas para definir o conteúdo e forma de Belarmino. O próprio Fernando Lopes diz, em tom de gracejo, que “Quando se chegou a dizer que Belarmino era cinema-verdade[17] eu dizia não, é cinema-mentira”. E se pensarmos que é justamente a montagem, ato necessariamente forjador, criador de continuidades artificiais, que exibe a verdade indexada no registro, transformando-a em mentira, necessariamente. Isto é, o ato de manipular os registros, de fabricar cenas e costurar todas as imagens (com fontes de naturezas extremamente diferentes) em uma unidade só, não tem capacidade de manter a realidade intacta.
E sendo a actante[18] de Belarmino, extremamente genuína – a falácia -, podemos entender a defesa de Lopes pelo seu cinema-mentira em pelo menos dois níveis: o processo cinematográfico – a montagem mais pontualmente – é necessariamente construtor de mentira; e a representação não é o correlato do universo afílmico e tentar defendê-la como tal significa defender uma mentira.
O teórico norte-americano Bill Nichols parte de um pressuposto interessante quando afirma que “todo filme é um documentário. Mesmo a mais extravagante das ficções evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela.”[19], para depois partir para uma distinção que pode ser controversa: “Na verdade, poderíamos dizer que existem dois tipos de filme: documentário de satisfação de desejos e documentários de representação social”[20].
Essa distinção proposta por Nichols é, obviamente, generalista, mas traz à tona um problema maior: ao definir sua terminologia, nessa dicotomia tão estrita, Nichols atribui a satisfação dos desejos à ficção (entendida aqui como narrativas com atores profissionais, em contraposição ao documentário com atores sociais ou culturais), e praticamente destitui o documentário da capacidade de satisfazer, seja esteticamente ou como puro entretenimento. Para, mais tarde, ter de apontar para a existência de obras híbridas e colocar estes exemplares em uma subcategoria específica. Ora, se há hibridez, é porque as categorias não são tão firmemente delimitáveis e, poderíamos chegar a dizer, que se a terminologia não abarca a realidade das obras é porque é falha. E falha, certamente, ao envolver juízos generalizados sobre a apreciação[21] – o espectador – em um termo que deveria tratar única e exclusivamente do conteúdo e forma das obras.
Se a distinção entre filmes de ficção e filmes documentais fosse feita pela única componente que realmente interfere drasticamente nas obras – os atores -, seguindo uma lógica de exclusão: se um filme contém um ator social, uma personalidade que interpreta a si própria, é porque esta obra busca representar indivíduos “que existem positivamente na realidade afílmica”[22].
Neste sentido, Belarmino seria tratado como um documentário que possui parcelas ficcionadas e as “Histórias que se baseiam no trabalho de não atores, como muitos dos filmes neo-realistas italianos ou algum do novo cinema iraniano”[23], poderiam ser tidos como puramente ficcionais se estes “não atores” desempenhassem personagens articulados para a trama (como grande parte do cinema neo-realista italiano, onde os não atores desempenhavam personagens que se assemelhavam aos seus papéis enquanto atores sociais, em estereótipos naturalizados pela semelhança); ou poderiam ser tidos como documentários se estes atuassem como si próprios.
Assim, se pensarmos Belarmino como um ator de si próprio ou alegoria de uma geração, teremos uma confluência desses dois universos: a satisfação de desejos, através do desejo de se fazer ouvir politicamente e da Beleza estética de uma larga porção dos planos, além da representação social dos artistas que não jogam o boxe.
Processo similar ao que acontece em Close-up, de Abbas Kiarostami, que constrói e reconstrói a história de Sabzian, interpretado pelo próprio Sabzian. E é absolutamente inegável o peso ficcional nesta obra – e não somente pelo fato desta realidade retratada ter um tom absolutamente irreal -, mas, principalmente, pelo fato do sujeito enunciador reconstruir os fatos – interferindo necessariamente em todo o processo – sem jamais se expor. É necessário conhecer a história por trás do filme para saber que trata-se de uma reconstrução, é preciso saber que Kiarostami leu sobre o julgamento de Sabzian em um jornal (assim como Lopes leu no jornal a notícia de Belarmino desmentindo sua presença no combate em Londres).
E esses dois homens – Belarmino e Sabzian – doaram parte de suas vidas para realizadores que não somente souberam preservar o que havia de terno nelas, como puderam enternecê-las ainda mais com doses de ficção. Belarmino soube do que era feito “Comecei a ter medo do boxe, mas depois comecei a pensar que a minha vida, que o boxe e a graxa era tudo igual (…) e comecei a pensar que tinha uma cabeça, dois pés e duas mãos. E comecei a jogar boxe”[24], ele era feito da mesma carne que Sabzian: “doravante sou um pedaço de carne de um animal que não tem cabeça e podem fazer de mim o que quiserem”[25], e fizeram[26].
Conclusão
Com este trabalho pretendemos ter elencado alguns dos mecanismos cinematográficos utilizados por Lopes, Cabrita e Veloso para retratar o panorama português do Estado Novo – o fracasso e a miséria – e apontar os caminhos da nação: a democratização metaforizada pelo jazz que funde espaços distintos e a esperança inoculada no sonho de Belarmino de tornar-se treinador.
Além de apontar as dificuldades levantadas, para a teoria documental, sobre os limites entre a ficção e o registro documental que, desde o cinema moderno são alargados e rearranjados.
Mas, apesar de poder se fazer árdua a tarefa de delimitar até onde Belarmino é uma biografia e a partir de que momento essa obra se firma como uma metáfora política, este é um exemplar de um cinema com contornos politicamente combativos em todas as suas esferas e extremamente atual na forma, nas questões e na abordagem de um Homem ainda contemporâneo. Mesmo que chegue o tempo em que o cinema de Lopes se amareleça e o discurso de um cinema sobre o fardo de saber-se português naqueles anos do século XX seja ultrapassado, o rosto afetivo de Belarmino Fragoso, sua sempre festividade com o futuro, mesmo que se tratasse de mais uma “mentira extraordinariamente comovente”[27] (“e vou fazer campeões enquanto tiver vida e saúde, assim minha vida mo permita”)[28] e sua pungente humanidade hão-de insuflar sempre vida ao filme, através da consciência de saber-se Homem de seu tempo e seu lugar.
*Texto escrito em 2009 para a disciplina Cinema Português, ministrada pelo Professor Fausto Cruchinho, parte do curso de licenciatura em Estudos Artísticos na Faculdade Letras da Universidade de Coimbra.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] José Filipe Costa. A Revolução de 74 pela Imagem. Pg. 2.
[2] E a obra de Lopes coopera para as “(…) rupturas que o Cinema Novo representava e que consistiam na sua adesão à realidade portuguesa, na oposição ao “velho cinema” através de inovações temáticas e estéticas e na resistência social e politica.” (Carolin Overhoff Ferreira. in O Cinema Português através de seus Filmes. Pg. 104).
[3] Terminologia de Gilles Deleuze in A Imagem-Tempo: Cinema II.
[4] Bill Nichols. Introdução ao Documentário. Pg. 187-188.
[5] Esta noção de autoria que faz coincidir na figura do realizador a responsabilidade ética e estética da obra é inovadora, visto que no “cinema velho” havia uma grande centralização na figura do ator, sendo o realizador apenas aquele que chegou mais alto na política de carreira estatal.
[6] Com o ato de auto-biografar a partir da biografia de outrem. E se o documentário “auto-retrato” baseia- se em um “pensamento que compõe uma interiodade por via de uma dobra da superfície” (Francisco E. Teixeira. Documentários em Primeira Pessoa? Pg. 42) também nessa auto-biografia mascarada podemos notar essas lacunas identitárias, isto é, podemos perceber posturas afirmativas de um eu realizador que se mascara por detrás de um ele fílmico.
[7] Fernando Lopes em entrevista feita por Augusto Seabra.
[8] Contrariando a lógica clássica do documentário (que baseia-se na retórica para construir uma montagem de evidencia que defenda uma tese), Lopes parte da retórica para construir uma narrativa, com uma montagem que pretende narrar uma história. A tese aqui converte-se em subtexto, retrato bastante abstrato de uma geração.
[9] Fausto Cruchinho. Os passados e os futuros do cinema novo. Pg. 220.
[10] “Belarmino é uma obra extremamente cinematográfica e, na minha opinião, sobre o ponto de vista narrativo é dos filmes mais belamente literários sem ser literato que já foi feito em Portugal.” (Baptista- Bastos em entrevista).
[11] “Já em 1923, (Béla) Balázs expõe com perspicácia sua percepção do cinema como recuperação da experiência visual após séculos de cultura baseada na palavra impressa”. (Ismail Xavier. A Experiência do Cinema. Pg. 21).
[12] Fotografias que parecem pretenderem-se unárias, transformando a realidade através da imobilização e permitindo uma nova percepção daquela pretensa realidade, como sugerida na seguinte afirmação: “Assiste-se a um filme, mergulha-se em uma foto” (Roland Barthes. A Câmara Clara.).
[13] “A cena do combate é feita sem uma nota musical, só com os ruídos e sobretudo o ruído do gongo, porque o gongo vai determinando aquilo que em cinema é espantoso, que é a redução do tempo em relação ao tempo real.” (Manuel Jorge Veloso, em entrevista).
[14] “O jazz era uma música, na altura, um pouco subversiva em relação à ditadura e ao obscurantismo cultural.” (Manuel Jorge Veloso, em entrevista).
[15] “O termo Reviralho, ou Reviralhismo, foi utilizado e assumido pelos revoltosos republicanos, democráticos e liberais, desde 1926 até à II Guerra Mundial e mesmo para além desse período. O termo parece estar associado à ideia de um movimento revolucionário relâmpago, com o objectivo imediato de reorientação democrática do regime político-militar em vigência.” [Luís Manuel do Carmo Farinha. O Reviralho: revoltas republicanas contra a ditadura e o Estado Novo (1926-1940)].
[16] Terminologia definida por Morin e Rouch de um cinema com uma “nova atitude estética e moral: os cineastas participavam da evolução da pesquisa e da filmagem”. (Jacques Aumont e Michel Marie. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Pg. 50).
[17] Terminologia definida por Morin e Rouch de um cinema com uma “nova atitude estética e moral: os cineastas participavam da evolução da pesquisa e da filmagem”. (Jacques Aumont e Michel Marie. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Pg. 50 ).
[18] “Actante designa a estrutura narrativa profunda de uma unidade no seio do sistema global das ações que constituem uma narrativa”. (Jacques Aumont e Michel Marie. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Pg. 10).
[19] Bill Nichols. Introdução ao Documentário. Pg. 26.
[20] Bill Nichols. Introdução ao Documentário. Pg. 26.
[21] “Julgamos uma reprodução por sua fidelidade ao original (…). Julgamos uma representação mais pela natureza do prazer que ela proporciona, pelo valor das ideias ou dos conhecimentos que oferece e pela qualidade da orientação ou direção, do tom ou do ponto de vista que instila. Esperamos mais da representação do que da reprodução”. (Bill Nichols. Introdução ao Documentário. Pg. 47-8).
[22] Jacques Aumont e Michel Marie. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Pg. 12.
[23] “Histórias que se baseiam no trabalho de não atores, como muitos dos filmes neo-realistas italianos ou algum do novo cinema iraniano, frequentemente ocupam parte do terreno indistinto entre ficção e não- ficção, entre histórias de satisfação de desejos e histórias de representação social.” (Bill Nichols. Introdução ao Documentário. Pg. 31).
[24] Belarmino Fragoso.
[25] Ali Sabzian.
[26] “Belarmino é uma lição de respeito e vem assim demonstrar uma verdade que me é cara: a de que o respeito por cada um implica o respeito também pela sua mentira, que é a consequência moral do respeito pela sua liberdade. (Gérard Castello-Lopes in Catálogo do Ciclo “Fernando Lopes por Cá”).
[27] Fernando Lopes, entrevistado por Augusto Seabra.
[28] “A força implacável da realidade nem no cinema o deixou representar o sonho de tantos anos – ser treinador”. (Fernando Lopes in O Jornal, aquando da morte de Belarmino Fragoso).
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XAVIER, Ismail. O Olhar e a Cena – Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. Cosac & Naify, São Paulo: 2003.
Maíra Freitas (1985, Campinas) é artista, pesquisadora, curadora e arte-educadora. Também mulher cisgênera, parda, lésbica e mãe solo. Sua pesquisa poética parte do desejo de criticizar as relações entre cultura e natureza e desdobra-se em múltiplas linguagens, passando pela arte do vídeo, fotografia, pintura expandida, instalação e arte têxtil. Expôs na
individual Solo da maternagem solo; e nas coletivas Videolatinas; Plantão, Ateliê 397; (Re)existências, ANPAP; e 3a Mostra Unificada. Curou o II Festival Lacração; a exposição coletiva (Cor)po paisagem; e a individual Desvio-Devir, no SESC Sorocaba. Doutoranda em Artes Visuais (Unicamp), dedica-se ao estudo das artes do vídeo e suas relações com gênero, sexualidade e racialidade.