IN THE SCOPIC FIELD, THE GAZE IS OUTSIDE, I AM LOOKED AT, THAT IS TO SAY, I AM A PICTURE.
JACQUES LACAN, FOUR FUNDAMENTAL CONCEPTS OF PSYCHOANALYSIS
ME CONMOVÍA EL PAVOR DE ESTAR EN UN SITIO ENCANTADO Y LA REVELACIÓN CONFUSA DE QUE LO MÁGICO APARECIA A LOS INCRÉDULOS COMO YO, INTRANSMISIBLE Y MORTAL, PARA VENGARSE.
BIOY-CASARES, LA INVENCIÓN DE MOREL.
Faz uns dias (meados de agosto de 2015) o governo russo oficialmente publicou a primeira guia para evitar a morte por selfie (https://mvd.ru/safety_selfie). Nos últimos anos vem se sucedendo as mortes e “suicídios acidentais” deste tipo. A causa da morte pode ser uma queda de uma ponte, um precipício, o contato com um fio de alta tensão, um acidente de moto ou carro (um estúdio da Ford revela que um de cada quatro europeus entre os 18 e 24 anos tem se fotografado enquanto dirige[i]), ou inclusive um disparo de arma de fogo. Mas a circunstância comum à todos estes casos é o autorretrato fotográfico, propositadamente realizado para sua posterior exposição online. Recentemente, o famoso pau de selfie tem se somado à tragédia, contribuindo a produzir algumas mortes, principalmente por acidente de carro e eletrocussão, pois além de uma distração esta prótese constitui um excelente pára-raios.
Primeira guia para evitar a morte por selfie,
publicada pelo governo russo em agosto de 2015
No primeiro capítulo da segunda temporada do seriado de ficção científica da BBC “Black Mirror”[ii]), o protagonista masculino, viciado em redes sociais, falece em um acidente de carro. Embora a série não especifica claramente a causa do acidente, ela fica implícita. A partir desse momento, sua esposa tentará aliviar a dor com ajuda das redes sociais do defunto marido, lidando com o luto com ajuda de uns aplicativos específicos que reconstroem a personalidade do defunto. “Be Right Back” é um exemplo perfeito de selfie-escravidão contemporânea e suas consequências narcisistas, no sentido mais amplo do termo. Isto é: além dum julgamento moral que não interessa-nos aqui, a operação narcisista do selfie tem a ver com a construção dum reflexo que, investido eroticamente, arrasta para a morte, como no caso de Narciso. Nesse sentido esta narrativa relaciona-se ao velho sonho da criação de autômatos humanos, fenômeno intimamente relacionado com a produção de imagos – termo que, segundo Regis Debray[iii], fazia referência desde sua origem ao retrato do defunto- uma espécie de avatar usado na condução dos rituais fúnebres.
“Markos Antinó, ¡ánimo!”, espeta-lhe o pintor ao retratado, Markos Antinó, um dos representados-encarnados num dos retratos fúnebres achados em Al Fayum, Egito. Os retratos de Al Fayum, diz Jean-Christophe Bailly, são uma colagem cultural “fruto do bricolagem religioso da Antiguidade tardia”[iv] que combinava retrato realista greco-romano com mumificação egípcia. Vinculado à ausência da pessoa, o retrato une suas forças à presencia do corpo físico. O retrato – que segundo conclui Bailly provavelmente acompanhou ao morto em vida e lhe serviu como toma de consciência da sua própria mortandade – é enviado para o túmulo; ele não permanece entre os vivos para eles recordarem o defunto. Ele, diz Bailly, não tinha outro destino senão a morte. O que se enviava para a morte era a aparência e, nesse sentido, a combinação de retrato realista e corpo oco mumificado não resulta tão chocante. A aparência, assim entendida, como pura vida, flutuante e fugidia; superfície bastante profunda.
Em 1840, Hippolyte Bayard foi o autor do primeiro (ou talvez do segundo, tanto faz) autorretrato fotográfico. Nele, o autor finge sua própria morte por afogamento, aproveitando para fazer um comentário engenhoso que denuncia a usurpação da autoria intelectual dos seus descobrimentos[v], pois Bayard foi o primeiro na França em usar o papel como suporte (ao invés do vidro usado por Daguerre e do estanho usado por Nièpce). Nem precisamos falar de Barthes, sua Câmara clara, a fotografia de sua defunta mãe e o punctum fotográfico. Basta dizer que a fotografia, na sua qualidade de colecionadora foto-sensível de instantes efêmeros, tem sido sempre uma excelente ferramenta de se relacionar com o além, de manter “vivo” o defunto, de retratar fantasmas, auras, ectoplasmas[vi] e, como no caso do filme de Michael Powell O fotografo do pánico (“Peeping Tom”), ou na famosa foto de Robert Capa do miliciano espanhol, inclusive de capturar o momento da morte.
Hippolyte Bayard, autorretrato afogado, 1840.
Um século depois do autorretrato afogado de Bayard, Bioy-Casares publicará A invenção de Morel, relato de ficção científica que constrói-se envolta dos efeitos dum complexo mecanismo que reproduz fielmente a vida por meio de imagens tridimensionais projetadas no espaço. O que foi captado pelo aparelho de Morel se projeta no espaço a escala e tempo real, se confundindo com a realidade. As consequências são, por suposto, funestas. “Congregados os sentidos” diz Morel, “surge a alma”[vii]. “Vocês têm dificuldade ao admitir um sistema de reprodução de vida tão mecânico é artificial?” – pergunta Morel -; “se lembrem que, na nossa incapacidade de ver, os movimentos do prestigiador viram magia”[viii]. Nesse sentido, cabe pensar na teoria da caixa preta de Flusser, que coliga ocultismo e tecnologia: o que acontece dentro da “caixa preta” permanece, até certo ponto, um mistério, magia.
Como diz Belting[ix], no rosto se condensa o paradoxo latente na antropologia da imagem ocidental: a tensão entre o culto ao corpo das religiões pré-cristãs por um lado e a negação do corpo em benefício da alma por outro[x]. O rosto apresenta a particularidade de ser corpo e alma; ele é um ciborgue ontológico que permite a fuga do corpo a partir do próprio corpo. Por outro lado, o rosto é o mais mortal que se tem, e pelo tanto o mais vital. A morte come os traços, e sobre tudo apaga o olhar. Será que após a morte do modelo, o olhar vivo do morto sobre a gente poderia supor um conflito? Os moais da Ilha da Páscoa só foram colocados olhando para o interior da ilha por motivos de encenação turística: segundo Thor Heyerdahl, eles provavelmente olhavam originalmente para o mar.
Poderia parecer que a morte tem sido domesticada, mas segundo Phillipe Áries, a morte no ocidente nunca foi menos doméstica[xi]. O selfie e suas plataformas de encenação virtuais podem ser entendidas como um fenômeno paliativo numa cultura onde um luto saudável consiste em tomar as pílulas adequadas e seguir produzindo ao ritmo dos tambores. Prova disso são os cada vez mais numerosos perfis de usuários sem vida, fenômeno que começa a chamar a atenção de pesquisadores e artistas como o Leonardo Goldberg[xii] ou José Jimenez Ortiz, artista mexicano que em seu projeto “Vivir eternamente” tem criado uma plataforma online para gerenciar e administrar este tipo de contas[xiii]. E tudo bem para os defuntos, mas quais são as implicações de virar imagem em vida? A máscara foi e continua sendo em muitas culturas um meio imprescindível para se expor e não, como se pensa às vezes, para se ocultar. A máscara é o meio pelo qual se vira imagem[xiv] ou se “aparece como objeto”[xv]. Mas o que acontece quando reclamamos nosso direito de sermos imagem, isto é, objeto cultural, sem a precaução de entender antes nossa fascinação pelo inanimado? Se só na morte viramos imagem sem máscara, quais os perigos de reverter o processo? A imagem de um rosto nu é já um anúncio do passo do tempo; o retrato uma preparação para a morte. Antes a morte fazia parte, existia uma consciência de que sua presença é iminência. Mas para escutar é preciso ter ouvidos.
A IMAGEM DE UM ROSTO NU É JÁ UM ANÚNCIO DO PASSO DO TEMPO; O RETRATO UMA PREPARAÇÃO PARA A MORTE.
As imagens podem produzir um novo e sinistro duplo de nós mesmos: elas podem funcionar como a imago biológica – último estágio que o inseto atinge durante suas metamorfoses ao adquirir asas e órgãos reprodutivos. Assim, nossas imagos podem circular no mundo público, se relacionando à outras imagos e até mesmo juntando-se entre elas e a ficção científica se embebe de sósias em conflito existencial ante o espelho. A artista Regina de Miguel, que trabalha na encruzilhada interdisciplinar entre ciência, ficção científica, filosofia e artes plásticas, tem criado em colaboração com a Lucrecia Dalt umas áudio-entidades cibernéticas que evidenciam a delicada fronteira entre vida e vida artificial e atualizam conflitos ontológicos clássicos[xvi]. Ser imagem (ser e não ser) é um problema que cada cultura enfrenta do seu jeito; mas numa sociedade baseada na pressuposição de que as imagens são simples ferramentas referenciais, ser imagem não pode supor um problema. A problemática em si própria vira tabu. “Se a práxis mágica caiu em desuso, a imagem só podia acontecer então a partir de um meio para a lembrança”[xvii], diz Belting. Mas a imagem, e sobre tudo o retrato, é muito mais do que um índice.
Em tempos passados a morte tinha um lugar delimitado, ritualmente regulado. Agora que não tem, ela se espalha por onde pode, se abre passo um dia, inesperadamente, na forma de sonho techno-apocalíptico ou de lapso freudiano e, como sob os efeitos da hipnose, nos dirige para uma ponte ou precipício onde tomamos nossa ultima foto e postamos nosso epitáfio cego antes de nos precipitarmos ao vazio da mão da nossa imago. Sem um lugar para a morte, a vida, como profetizava Bioy-Casares na invenção de Morel, “será um depósito de morte”[xviii]. Como no filme “Film” – escrito e dirigido por Samuel Beckett e protagonizado por Buster Keaton-, onde o mundo explode num caleidoscópio medonho de olhares animados que seguem cada movimento do neurótico.
“Os mortos”, diz Belting, “moravam em uma cidade de mortos, na qual possuíam uma casa própria onde moravam como imagens”[xix]. Agora, os vivos moram numa cidade além do corpo, onde, convertidos em imagem, possuem um lar próprio feito de imagens. Em A invenção de Morel o corpo é sacrificado para se realizar por meio da imagem, o que basicamente é uma translação do mito original cristão. É por isso que depois a Magdalena não pode tocar Cristo ressuscitado: “Noli me tangere”, diz á imagem do defunto. No “Congresso futurista”, filme de Ari Folman protagonizado por Robin Wright[xx], virar imagem (a tempo completo) se converte na única possibilidade de sucesso e, depois, torna-se imprescindível para a integração e interação. A sobrevivência deixa de ser uma questão do corpo para virar uma questão de imagem, e da imagem como veículo do desejo e única forma “satisfaze-lo”. No capítulo de “Black Mirror” que citamos no começo do artigo, o defunto é reconstruido por meio das informações que os avatares digitais dele fornecem, mas nunca, claro, satisfatoriamente.
No seu ensaio sobre o princípio ou pulsão de morte, Freud reconhece que, além do principio de prazer, existe um instinto conservador da matéria que tende a uma fase anterior do seu desenvolvimento. O animado abandonou, em algum momento, o inanimado: a vida surge, de forma absolutamente improvável, num entorno pouco propicio, e tende ao inanimado, se inclina em sua direção. Nesse sentido, a evolução não tem porque ser, necessariamente, o triunfo da pulsão de vida, pois da mesma forma poderia se pensar a evolução como a consumação do “destino final” da matéria, isto é, da morte. Parece-me que no fenômeno selfie evidencia-se esta atração que o inorgânico exerce sobre nós: responde a uma necessidade de virar objeto, de aparecer como objeto. Mas essa necessidade é também a necessidade de deixar de viver, por um instante, ou de deixar de ser um indivíduo. Mas, como reconhecer este impulso numa cultura que reivindica o progresso como o triunfo do principio de prazer, mesmo se resulta cada vez mais evidente que este responde a um impulso suicida que põe tudo ao serviço da destruição da vida sobre a terra? O fenômeno selfie teoricamente responde a uma necessidade de reivindicar e se fazer manifesto um impulso profundamente vitalista e individual, mas até que ponto se ocultam no verso os impulsos que consideram-se opostos? Morte, reificação e anonimato coletivo.
Na imagem confluem o animado e o inanimado, sem que, como diz Freud, tenhamos noção nem científica nem de outro tipo do que realmente diferencia a vida da morte. Segundo Regis Debray, a morte sempre fez parte da imagem. A associação morte/imagem, diz Belting, é tão antiga quanto a produção de imagens. Se a noção da morte foi reprimida na sociedade ocidental, logicamente vai ser na imagem onde continue aflorando. Agora quer-se acreditar que a arte é uma operação “intelectual” de extrema clareza. Mas as imagens (e pulsando nelas nossa própria alteridade) não vão aceitar essa concepção tão facilmente.
*Texto escrito para a Revista Kultur, publicado em 2015.
REFERÊNCIAS
[i] A lista é encabeçada por ingleses, franceses e alemães. Leia mais em VAZQUEZ, Karelia. Nueve maneras para evitar morir por selfie. Madrid: El Pais Digital, 18/08/2015: http://tecnologia.elpais.com/tecnologia/2015/08/05/actualidad/1438775393_590130.html
[ii] Capítulos completos disponíveis online em: https://www.youtube.com/watch?v=mzSIQxc_KqE ou http://www.dailymotion.com/video/x10vsex_espelho-negro-t2e1-esteja-de-volta-legendado-pt_shortfilms
[iii] DEBRAY, Regis. Vida e Morte da Imagem. Barcelona: Paidos, 2010.
[iv] BAILLY, Jean-Christophe. La llamada muda. Madrid: Akal, 2001.
[v] No verso da fotografia o próprio autor escreve: “O cadáver do Senhor que você vê no verso é aquele do Sr. Bayard, inventor do processo de que você acaba de ver ou vai ver os maravilhosos resultados. Em meu conhecimento, há cerca de três anos esse engenhoso e infatigável pesquisador se ocupava de aperfeiçoar sua invenção. A Academia, o Rei e todos aqueles que viram esses desenhos que a ele pareciam imperfeitos os admiraram como você os admira neste momento. Isso lhe deu grande honra e não lhe valeu um centavo. O governo que tinha dado demasiado ao Sr. Daguerre disse nada poder fazer pelo Sr. Bayard e o infeliz se afogou. Oh, instabilidade das coisas humanas! Os artistas, os eruditos, os jornais se ocuparam dele durante muito tempo e hoje, quando há vários dias ele está exposto no necrotério, ninguém o reconheceu ou o reclamou ainda. Senhores e Senhoras, passemos a outros, por temor de que seu olfato seja afetado, pois a figura do Senhor e suas mãos começam a apodrecer, como você pode observar.” Leia mais em: RIBEIRO, Marcelo. Autorretrato afogado (1840), de Hippolyte Bayard. São Paulo: Incinerrante, 03/12/2013: http://www.incinerrante.com/textos/autorretrato-afogado-1840-de-hippolyte-bayard#ixzz3jdO7fblO
[vi] Leia mais em: RAMIRO, Mario. O gabinê fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil: a representação do invisível no território da arte em diálogo com a figuração de fantasmas, aparições luminosas e fenômenos paranormais. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27159/tde-13072009-190522/pt-br.php
[vii] BIOY-CASARES, Adolfo. La invención de Morel. Buenos Aires: Booket, 2013. p. 107
[viii] Ibidem.
[ix] BELTING, Hans. Antropología da Imagem. Madrid: Katz Editores, 2012.
[x] Idem, p. 119.
[xi] ARIES, Philippe. Historia de la muerte en occidente. Barcelona: Acantilado, 2000, p. 33-34
[xii] GOLDBERG, Leonardo. Perfis Póstumos nas redes sociais. Revista Filosofia Ciência e Vida. Ed. 109, agosto de 2016
[xiii] Na obra de José Jimenez Ortiz existe também um componente geopolitico, especifico do norte de México, que fica evidente em algumas das consignas publicitarias que o artista dirige para o publico nesse projeto: “¿Has comentado el estatus o enviado mails a un muerto?”; “¿Estás seguro de que todos tus contactos siguen vivos?”
[xiv] BELTING, Hans. op. cit., p. 118
[xv] Logicamente, aparecer como objeto é um processo bem mais complexo do que botar uma mascara. Tomo emprestado este conceito da Marilyn Strathern, que fala por um lado da reificação das pessoas nos rituais melanesicos, e por outra parte, do acto de fazer aparecer as coisas ocultas nesses mesmos rituais. As pessoas podem virar objetos e aparecer como tais. Leia mais em: STRATHERN, Marilyn. Learning to See in Melanesia. Em: Hau Masterclass Series, Vol 2. Series. Ed. DA COL, Giovanna; DOWDY, Sean; SWIFT, Philip. Manchester: Cambridge University, 2013.
[xvi] Veja/escute mais em: http://reginademiguel.net/Ansible
[xvii] BELTING, Hans. op. cit., p. 185.
[xviii] BIOY-CASARES, Adolfo. op. cit., p. 122
[xix] BELTING, Hans. op. cit., p. 199
[xx] No papel, ao mesmo tempo revelador e mascarado, dela própria.
Claudia Rodriguez Ponga Linares desenvolve sua pesquisa doutoral sobre relações entre formas de produção artística e modelos mágicos na ECA/USP, é graduada em Belas Artes pela UCM de Madrid e Mestre em curadoria pela Goldsmiths College de Londres. Escreve e cura. Tem publicado o livro Tentempié e atualmente é colaboradora da plataforma multimedia El Estado Mental (Espanha). No 2014 curou a exposição Abrakadabra na Galeria Jaqueline Martins e neste ano seu projeto sobre Miniaturas, maquetes, vodu e outras projeções políticas foi selecionado no edital do C.LAB Mercosul de Blau Projects. Recentemente foi premiada com uma bolsa da UCLA para participar da Conference on The Arts in Society em Los Angeles e ministrará uma matéria no curso online sobre Antropologia e Arte na plataforma mexicana Contexturas (http://www.antropologiayarte.com/).