Entrevista com Fabiana Faleiros | ARTIFÍCIO

Maíra Endo: No seu episódio do Artifício, você diz que sempre se pergunta quem pode acessar o circuito das artes. Que tipo de restrições ou barreiras existem hoje para um artista que está começando a se desenvolver profissionalmente e busca esta inserção nos circuitos existentes? Qual a importância do circuito de arte auto-organizado ou independente para os artistas que têm dificuldade de inserirem-se nos circuitos hegemônicos?

Fabiana Faleiros: Sim, essa pergunta é bem presente pra mim. Existem barreiras que são estruturais, de raça, classe, gênero, região e por aí vai. E em tempos de crise relacionada à pandemia, o mercado mainstream tende a fazer um retrocesso em relação ao avanço dos levantes anticoloniais. Grandes galerias apostam mais em artistas homens brancos consagrados, já que trabalhar com artistas emergentes e contestadores representa um risco. Acho que a potência dos circuitos auto-organizados está justamente na forma de atuação não-hierárquica e na intersecção entre crítica e criação artística. Ao invés de buscar uma inserção nos circuitos hegemônicos se cria mercados, pensamento. Pensando no circuito de São Paulo, a HOA TOUR, por exemplo, que foi criada em 2020 por Igi Lola Ayedun, e se dedica à arte contemporânea latino-americana sem a carga de exotificação que o recorte carrega. Além de galeria, combina narrativas de artistas emergentes em práticas de estúdio e educação, incluindo as redes sociais como plataforma de vendas e criação de conteúdo. Recentemente também houve a exposição do videoclipe “Gasolina”, da banda Teto Preto na sala de vídeo do MASP, criado em 2016 no contexto das festas independentes organizadas por mulheres e LGBTQI+ no centro de São Paulo. A obra, que articula performance, música, dança e figurino, foi adquirida pelo MASP, criando uma ponte entre o museu e o mercado da música independente, tocada nas pistas de dança e nos protestos de rua que acontecem no Vão Livre do MASP, onde o videoclipe foi gravado. É uma existência que se afirma num movimento que existe fora do circuito artístico e entra para a coleção do MASP mantendo sua autonomia.

ME: Qual a potência deste encontro entre a Fabiana educadora e a Fabiana artista? Você também busca de alguma forma “educar” através de seu trabalho como artista?

FF: Acho que uma não existe sem a outra. Deslocar processos de produção de conhecimento para fora da sala de aula sempre me interessou e tenho cada vez mais criado ambientes que funcionam como micro universos onde minha pesquisa teórica se desdobra em performances, músicas e objetos. Foi no “Mastur Bar”, projeto iniciado como exposição individual na Solo Shows Gallery em 2015, São Paulo, onde comecei a desenvolver aulas-show, que podem ser entendidas como lecture- performances.  A instalação funciona como um bar, e tem essa ideia da pesquisa acadêmica acontecer como uma conversa de bar. Venho de um contexto de atuação em festas independentes como cantora e DJ e ao mesmo tempo frequente a academia. Nestes dois lugares, meu interesse sempre esteve em pensar em como se aprende. No “Mastur Bar” uso uma lanterna, que remete as canetas luminosas das palestras, e também ao teatro de sombra, para mostrar como o gesto de desmunhecar se repete em imagens da história da arte ocidental, da cultura pop e da iconografia da histeria, feita para inventar a doença como exclusivamente feminina. Foi uma forma de perceber como o desmunhecar colaborou com a criação da mulher branca como categoria universal por meio de uma ficção histórica colonial. Foi um processo onde eu mesma aprendia e entregava uma genealogia do gesto, uma história da arte feita a partir de um gesto do corpo. Quebrar a hierarquia entre quem ensina e quem aprende pode ser mais fácil se for um processo feito fora da sala de aula. Deslocar a aprendizagem para o corpo, investigando o corpo, ao invés da disposição clássica de uma sala de aula muda tudo. E a educação passa por pensar a sexualidade, já que é neste território onde as relações de poder são definidas. Também gosto do movimento inverso de chegar na academia com propostas que desarticulam as formas hegemônicas de produção de saber. Na pandemia criei um grupo de estudos chamado “Minha tese começa assim”, que propõe pensar as fronteiras entre a escrita de si, escrita acadêmica e ficção. A partir da minha tese de doutorado, defendida em 2017, e com textos de autoras como bell hooks e Donna Haraway, a proposta é que a escrita acadêmica não produza uma nova ferida, e sim seja uma potência de sanação ao enxergar o lugar de onde se fala.

ME: Não são poucos os que afirmam que hoje, com o avanço do mercado sobre o circuito institucional (que inclui museus, universidades e meios de comunicação), não existe crítica de arte. Como você entende a importância do artista-crítico, vertente do artista-etc, no âmbito da crítica de arte hoje?

FF: Acredito que existe sim uma crítica de arte sendo feita por diferentes agentes no circuito institucional – e fora dele – que extrapola as dicotomias entre quem produz arte e quem produz crítica. O artista-crítico é uma peça chave na reinvenção do lugar da crítica, já que se coloca como ser pensante, e não apenas como quem cria um objeto a ser consumido por determinado mercado. Criar intimidade com a matéria texto é uma forma de ocupar um lugar de criação de pensamento, o que faz o circuito se expandir, como entidade viva que é. Se não, o sistema de arte segue sendo muito autofágico. Artistas criam circuito de forma ativa, escrevem histórias da arte.

ME: O comércio justo é entendido como um movimento social e também como um modelo comercial que posiciona, em seu centro, os seres humanos. Ele busca promover formas responsáveis e sustentáveis de produzir e comercializar, assim como oportunidades de desenvolvimento para agentes em desvantagem econômica e social. Qual a importância de pensarmos formas de comercializar arte sem agenciamento ou, ainda, sem fins lucrativos?

FF: A forma padrão de comercialização de arte, com as galerias dividindo o lucro da venda em 50%, em geral, com quem cria a obra é muito injusto. E pensar formas de comércio justo no circuito da arte, atravessadas por conexões afetivas, é fundamental. A Kuceta Plataforma foi uma tentativa de gerar um tipo de economia numa articulação coletiva entre pessoas dissidentes do mercado hegemônico, vindas de realidades distintas. Participamos de feiras de publicações e festivais de performance pensando em ascender produções de mulheres, trans e travestis, negres e indigenes. Também elaboramos projetos para editais de fomento à cultura com o objetivo de gerar recursos para a plataforma, além de um site onde comercializávamos nossos trabalhos, pensando numa divisão dos lucros que fosse justa entre as pessoas participantes que já tem uma certa estabilidade no mercado e as que ainda não tem. Foi uma experiência curta que tentou desenvolver outros tipos de troca. Acho fundamental criar essas conexões num circuito que tende a gerar tensões nas formas coletivas de trabalho, já que a figura da artista como ser individual segue sendo a norma. 

ME: Como você vê o papel do artista-etc no processo de “decolonização” das instituições culturais brasileiras?

FF: Desde quando Basbaum criou o termo artista-etc no início dos anos 2000, o etc só cresce. Penso na articulação artista-blogueira e como é curioso, apesar dos blogs estarem em desuso, o termo blogueira persistir, e no feminino. Foi atribuído ao feminino cumprir com as demandas multitarefas, ser a secretária de si, ter um trabalho que sustente a vida enquanto ainda não se vive de arte e se é que isso acontece um dia. Penso nisso pois foi nas redes sociais onde se articularam os levantes antiracistas e feministas que cresceram a partir de 2015, confrontando as ausências e as formas de presença no circuito artístico. Hoje, museus e centros culturais estão aprendendo a como criar uma política de reparação histórica e isso só acontece por conta da demanda de artistas que propõem práticas e pensamentos para além da função de criação de obras. E cada vez mais pessoas dissidentes ocupam cargos como de curadoria e direção de grandes instituições. Acho que o caminho está aí. Como diz a artista Camila Valones, “Você convidou ou foi convidade?”