Receita de biscoito chiringa ou como alimentar os filhos do patrão

Ô dona Lurde, mainha mandou dizer que tá fazendo biscoito, tá perguntando se tu n quer bater um bolo p aproveitar a quintura do forno.

Era assim q eu saia, quando criança, pela vizinhança chamando as mulheres a juntar ingredientes e aproveitar a feitura do bolo. Minha mãe sempre foi boa de forno, ganhei isso dela, gosto de assar a comida. Ela sempre fez biscoito chiringa pra gente. Biscoito chimango que é mais nobre e leva mais ingredientes e chiringa que rende muito, além de ser bem mais divertido.

O balaio forrado c um lenço recebendo fornadas de biscoito crocante e cheio de vida. Eu sentada do lado, tomando café e aprendendo a fazer a iguaria. Minha mãe contando histórias. Faz parte de mim o cheiro do biscoito quente. Eu aprendi a fazer, ontem aproveitei a chuva para usar uma goma q tava guardada, comprada na feira de são joaquin.

Enquanto amassava com as mãos a massa crua percebi o quanto me pareço com minha mãe, as mãos secas, pele e osso, o jeito de formar concha pra limpar a borda da gamela. Mãos que ela oferecia pra gente lamber os restos de massa crua, sempre dizendo q pode causar dor de barriga. E me contava a história de uma certa preta que trabalhava na casa de uma senhora, fazendo biscoitos chiringa, fazia biscoitos pra alimentar os filhos da senhora, uma dia a preta foi questionada:

Pq seus filhos são mais graudos que os meus, se quem come biscoito chiringa são meus filhos? Tu rouba dos meu pra dá de cumê os seu?

E a preta de cabeça erguida responde:

Lavo minhas mãos breadas de massa crua de biscoito chiringa, levo pra casa e faço mingau. Dô de cumê meus fio com mingau, eles são graúdos de labuta e sofrimento. Não é de roubo não minha senhora.

Eu fico cá me perguntando com quantos dedos breados se alimenta uma nação? Quem me alimentou me deu mais que pão, me deu uma história pra contar, me ensinou contando histórias. Eu ainda corria a rua carregando sacos de biscoito chiringa pra entregar pra minha avó e minha tia piuxa, gostava daquilo não sei ao certo o porquê. Mas carregar aqueles embrulhos e distribuí-los me dava uma sensação de pertencimento. Eu era parte daquilo de compartilhar e dividir a labuta.

Eu fiz chiringa outro dia, ainda não ficou igual o da minha mãe, talvez eu ainda não saiba a hora certa de colocar a água quente na massa. Talvez eu ainda não saiba temperar a vida, talvez eu ainda deixe seca isso que chamo de existir. Ou é calundu?

500 g de polvilho azedo

250 ml de óleo morno

250 ml de água fervendo

1 colher (café) de sal

1 ovo

Escaldar a farinha já salgada com a água e o óleo e acrescentar o ovo. Amassar e moldar com ajuda de um saco. Botar no forno quente.


Este escrito é dedicado à minha mãe d. Zilda e à todas as mulheres de minha ancestralidade que me ensinaram a contar histórias.

*Receita de biscoito chiringa ou como alimentar os filhos do patrão foi escrito para a 3a edição da revista Gravidade, publicada em novembro de 2019 em Salvador/BA. O texto parte de uma pesquisa sobre as histórias que a artista escutou na infância, uma tentativa de recontá-las através de uma bricolagem: são fragmentos de narrativas reais e ficcionais. Gravidade é uma publicação de arte independente dedicada a evidenciar a qualidade das produções artísticas, performativas e poéticas de artistas dissidentes que, uma vez fora ou à margem do circuito tradicional de arte contemporânea brasileiro, por ele mesmo invizibilizadas, vêm se destacando na cena independente. Isso a partir do trânsito entre fluxos de marginalidades e precariedades e da proposição de formas de viver e produzir arte que deslocam os padrões normativos hegemônicos. Gravidade é desenvolvida por três artistas: Carol Dia, Levi Barbosa e Talita St. São colaboradoras fixas JeisiEkê de Lundu, Daniela Lisboa e Malayka SN. As 5 edições da revistra Gravidade podem ser acessadas aqui

JeisiEkê de Lundu é nascida na beirada entre Minas e Bahia, mistura montanhas e dendê para criar processos artísticos que envolvem cura, memória, ancestralidade e biopolítica, em uma encruzilhada diaspórica sertaneja no litoral. Artista interdisciplinar, navega nas artes visuais em suportes como a performance e a escultura, cria microfilmes, escreve crônicas, costura e esculpe figurinos, modifica faces utilizando maquiagem e elementos orgânicos ou sintéticos. Atualmente vive e trabalha na cidade de Salvador/BA, cursa Artes na UFBA e mantém o atelier CasaPallet como residência artística.