A educação pelo mato

De 2012 a 2016, realizei incursões por terra, água e ar na região um dia chamada de Paragem das Conchas, que corresponde hoje ao município de Osório, onde tenho meu ateliê. Dessa expedição resultou minha tese de doutorado e uma coleção de postais com imagens e poemas – atualmente esgotada – publicados pela editora Azulejo.

Gosto de pensar que esta experiência de observação e contato direto com a natureza ou “ateliê a céu aberto” possibilitou uma reeducação do olhar, uma espécie de percepção endêmica, moldada e criada em contato com essa paisagem específica. Daí resulta uma reflexão não apenas sobre os processos de humanização da natureza, como também da animalidade do homem. Nesse momento de quarentena, acho oportuno revisitar esse conjunto de dezoito lições, a começar pela cutia, que costuma aparecer no inverno.

Lição da CutiaDasyprocta aguti (Linnaeus, 1766)

É o sabor das nozes-pecã que as trazem ao platô a pecar. Entre os meses de maio e junho, entregues à tentação, os roedores de hábitos crepusculares, mesmo sob o sol a pino, abandonam a proteção das tocas no mato da encosta para explorar as clareiras abertas pelo cultivo das nogueiras. Animais ágeis e agoniados, as cutias exibem a coleta das nozes asseguradas por seus cinco dedos equipados com três garras. Comem, enterram e desenterram freneticamente o bendito fruto. Batem as longas patas traseiras no solo, sentam e arrastam a minúscula cauda rudimentar, assinando com odores o território. Enquanto isso, o focinho e as orelhas estão sempre alertas. Na falta da onça e da jaguatirica, é o bicho homem o seu principal predador. A pelagem aguti, com efeito furta-cor, reluz feito ouro na mirada do caçador. Cada banda de pelos, catalisada pela eumelanina, projeta-se, aos olhos humanos, feito arco-íris castanho/preto/branco/amarelo/vermelho. Em dias sem vento as cutias ficam menos arredias e, com passos leves, é possível fotografá-las com a teleobjetiva de 22-250 milímetros.

*A educação pelo mato foi publicado originalmente em 2016, pela Editora Azulejo, no livro de artista Estudos sobre a terra, de Lilian Maus. Para integrar o acervo do HIPOCAMPO, A educação pelo mato foi ligeiramente adaptado.

Lilian Maus é artista e professora de Pintura do Instituto de Artes/UFRGS. Nasceu em Salvador/BA, e vive entre as cidades de Porto Alegre e Osório/RS. Vem expondo seu trabalho artístico em mostras nacionais e internacionais, com obras em acervos públicos e privados. Recebeu prêmios municipais, estaduais e federais. É Doutora em Poéticas Visuais e Mestre em História, Teoria e Crítica da Arte – PPGAV/Instituto de Artes da UFRGS. Graduou-se no Bacharelado em Artes Plásticas e na Licenciatura em Artes Visuais pelo mesmo instituto. Como pesquisadora integra o conselho de revistas especializadas como DAPESQUISA, CLIMACOM e HIPOCAMPO, além de organizar publicações, com destaque para o livro “A Palavra está com elas: diálogos sobre a inserção da mulher nas artes visuais”, realizado em parceria com a jornalista Isabel Waquil e o livro de artista “Estudos sobre a terra”, pela editora Azulejo. Foi gestora cultural do espaço artístico independente Atelier Subterrânea (Porto Alegre, 2006-2015) e vem ministrando cursos livres e palestras em âmbito nacional e internacional. Atualmente está à frente da curadoria artística do Azzurra, em Porto Alegre.