“A vingança é uma espécie de justiça selvagem”, teria escrito o filósofo, jurista, e ensaísta inglês, Francis Bacon, em seus “Ensaios sobre moral e política” em 1625.
No verão em São Paulo, em dias de muita chuva acontece de algumas árvores caírem. Isso causa um certo tumulto no trânsito.
Os motoristas, que acreditam que a cidade foi feita para os carros, onde não mais cabem as árvores, blasfemam contra o absurdo de uma árvore impedir o trânsito.
Sem lugar em meio a tanto concreto, sem espaço para fixarem suas raízes, estressadas por uma cidade tão absurda, imaginamos algumas dessas árvores “tomando os carros como reféns”.
A citação original, de um passado já remoto, sugere a ideia de que, quanto mais flui a natureza humana, mais deve a lei extirpar o sentimento de vingança. Minha apropriação da frase, no presente, ecoa nessa imagem de um carro suspenso por uma árvore. Um ícone da modernidade e da industrialização, fetiche reincidente nas grandes metrópoles, sequestrado por uma natureza em estado selvagem.
A princípio, em projeto de 2013, o ambiente seria urbano: árvores resilientes vingariam a condição que lhes foi imposta, à vista de tantos veículos vagando atrapalhados pelas vias da cidade.
Mas os desígnios das circunstâncias levaram o projeto a outro ambiente.
Em 2016, o carro, um Fusca branco foi instalado no alto do mirante do Parque Serrinha, suspenso por um eucalipto longilíneo e valente.
O ambiente se mostrou diferente, logo após a montagem. A paisagem se modificou.
Algumas tensões se instauraram diante do veículo suspendido pelo eucalipto longilíneo e forte.
Na ocasião, houveram acontecimentos no entorno: música, dança, performances, ensaios fotográficos.
Assim, do alto de um galho em forquilha, a cena expôs a submissão da carcaça de ferro e aço à paisagem, exibindo contradições da relação entre espaço rural e urbanidade, entre natureza e tecnologia.
Houve uma projeção de vídeos mapeada sobre o branco do carro. Houve quem notasse o contraste de tal ícone industrial em derrocada diante da força da natureza que se recuperava de um incêndio recente na montanha. Houve quem falasse de sequestro de carbono. Houveram debates. Em uma noite fria, com Rodrigo Braga e Fabio Delduque, questionamos a ideia de progresso, o anjo da história que só deixa destruição em seu percurso, de costas em direção ao futuro. Foram mencionadas palavras como miração, sonho, devir, lugar, horizonte.
E desde então a instalação faz parte do complexo de obras do Parque Serrinha. Aberto à visitação pública, o trabalho foi visto e fotografado por milhares de visitantes, o que foi proporcionando uma forma de entender a ação do tempo sobre a obra, entre um acontecimento do passado e especulações sobre um futuro anacrônico.
A árvore manteria o carro erguido? Por quanto tempo? Como as partes de ferro e aço resistiriam aos desígnios da natureza?
Em 2020, novas contingências levaram o trabalho a migrar conceitos e renovar suas bases iniciais: um incêndio fez despencar o Fusca de ponta cabeça rumo ao chão.
Chamuscado por um fogo alarmante (aparentemente espontâneo, mas de uma terra que já reclama os descasos com o planeta) e logo tomado por ferrugem, os termos do acerto de contas inicial se reforçaram por outras vias.
Ferrugem e terra, carvão e pele. Marcas, vestígios, ritos, cenas refeitas, paisagens reapropriadas.
A presa se extingue. Tudo se ressignifica.
A natureza segue, o progresso se enterra, em vias de se tornar vestígio.
Uma mostra irônica [proto-museológica] do que foi um dia a exaltação da máquina sobre o indivíduo, em estado ainda latente.
Marcas, vestígios, ritos, cenas refeitas, paisagens reapropriadas. Tudo se ressignifica. Uma espécie de futuro do passado, um futuro sem presente.