Arrasto: memória submersa ou retida nas margens do rio que corre para o interior

 

Escrever sobre hoje também é voltar ao ontem. O que foi ainda permanece, mergulhado na memória, assim como a lembrança da água continua a murmurar na forma do seixo rolado extraído do leito de um rio seco.

Quando, retrospectivamente, direciono o olhar à produção de Marcelo Moscheta, abarcando-a desde o início até o presente, percebo que ele tem criado um conjunto de trabalhos extremamente coeso, mas por caminhos cheios de ramificações. A ideia de ramificação advém do fato de que, ao longo dos anos, seguindo a inquietude de sua pulsão criadora, ele partiu da gravura, passou a elaborados desenhos, trabalhou com fotografia e linguagem escrita, explorou materiais e suportes, avançou no espaço para além da superfície e chegou a complexas instalações. Com a sabedoria de agregar a um novo trabalho a experiência acumulada durante a realização de muitos outros anteriores, com o conhecimento de hibridar categorias, com a precisão e o preciosismo de virtuoso, o artista exibe alta qualidade formal nas diferentes categorias, técnicas, materiais e suportes que emprega. Porém, não é a cuidadosa execução de seu trabalho o que mais importa, e sim os questionamentos que faz e as respostas que dá ao debate sobre arte contemporânea e, sobretudo, o modo como seu trabalho alcança refinamento conceitual e profundidade poética.

Múltipla nas maneiras de ocupar o espaço e de se constituir materialmente, a produção de Moscheta possui um eixo poético/conceitual que a torna densa e coerente. Independente do meio, o resultado revela sempre o encontro do sujeito com o mundo, numa conversação que é mediada pela memória na contínua tensão entre lembrança e esquecimento, presença e ausência, conservação e destruição, eco e silêncio. Suas obras se movimentam entre passado, presente e futuro, num fluxo contínuo e circular que suspende a regulação dos tempos verbais. Foi assim com as grandes gravuras criadas há cerca de uma década a partir de fotografias do velho álbum de fotografias herdado de seu avô, e assim é com os trabalhos mais recentes. Só que Moscheta, já há alguns anos, abandonou o uso de memórias alheias – guardadas em registros de lugares que não foram por ele vivenciados e que, todavia, integravam sua memória afetiva familiar – e passou a agir como um explorador de paisagens, vasculhador de territórios e coletor de materiais, que uma vez colecionados fixam suas próprias memórias – que podem incluir as dos outros – formadas durante seus deslocamentos pelas diferentes paisagens do mundo. Nesse sentido, portanto, as obras que arquivam fragmentos materiais do território percorrido guardam as memórias tanto do artista quanto deste território.

O lugar de criação da atual produção de Marcelo Moscheta é sem limite e movediço, uma vez que ele age como viajante, coletor, arquivista e colecionador, passando do ateliê ao campo de pesquisa, e vise versa, lançando-se a explorar terrenos desconhecidos, ao seu mundo e à sua arte. Olhando para a trajetória de sua produção, fica claro que seu foco de interesse está centrado nas noções de território e de representação da paisagem. E, creio eu, foi este interesse que o estimulou a ampliar seu campo de ação e adotar a postura de explorador/artista/cientista/viajante, atualizando a linhagem tão comum nos séculos XVIII e XIX, aqui e noutros lugares, e que fora responsável por alguns dos primeiros registros visuais de inúmeras paisagens do mundo não documentadas até então. Moscheta, com linguagem e meios contemporâneos, recupera a figura do artista explorador e, em Arrasto, mescla-a com a figura do explorador bandeirante, potencializando os significados contidos em sua própria expedição pelas margens do antigo rio Anhembi.

Configurada como paisagem do Rio Tietê e exibida no Museu Casa do Bandeirante, em São Paulo, a instalação Arrasto rememora a história deste rio cujo curso ao contrário, correndo para o interior do país, deu inicialmente a direção a ser seguida pelos sertanistas bandeirantes, que, desde o século XVI até o século XVIII, partiram de São Paulo e embrenharam-se pelos desconhecidos sertões do interior, tendo como objetivos descobrir minas de metais e pedras preciosas, aprisionar índios para fazê-los escravos ou, em caso de reação, exterminar etnias inteiras. A longa e extensa movimentação dos violentos “paulistas” – primeira denominação dada aos bandeirantes pelo fato de eles terem origem ou partirem das redondezas de São Paulo – acarretou tanto a expansão do território brasileiro para além da fronteira demarcada pelo Tratado de Tordesilhas quanto o surgimento de inúmeras cidades, edificadas onde antes eram territórios indígenas. Mas a revisão histórica contemporânea desmontou teoricamente e simbolicamente a imagem heroica do bandeirante, elaborada nos séculos XIX e XX pelos defensores do poderio econômico de São Paulo sobre o país e representada por artistas paulistas – do acadêmico Benedito Calixto (1853-1927) ao modernista Victor Brechet (1894-1955). O estatuto do valente desbravador foi reconduzido ao de assassino cruel e bárbaro. Sem desejar condenar ou absolver a figura do bandeirante, Marcelo Moscheta dela recupera o caráter de explorador de territórios ermos, e assim reúne mais referências para seu processo de investigação de paisagens não dominadas, em busca de tesouros poéticos.

Arrasto, além de exibir a forte ligação com o local em que está montada, demonstra o modo como Marcelo Moscheta trabalha a memória da paisagem realizando junções de tempos diferentes pela ligação de elementos representados por meio das técnicas tradicionais da arte aos elementos reais, coletados nos locais de investigação. O artista opera criando relações entre os conceitos de representação, destacado pelo desenho, e de apropriação, posto pela coleção de amostras e informações contidas na obra. Nessa operação, conceitos e procedimentos ortodoxamente situados em posição antinômica, se complementam na abertura de vasta pauta de questões que nos leva a indagar sobre como uma obra de arte, poética por natureza, pode responder a assuntos relacionados com história, arqueologia, geologia, geografia, cartografia, topografia, hidrografia e meio ambiente implicados na reflexão sobre a paisagem do mais importante rio paulista.

Como um viajante, Marcelo Moscheta escolhe o local a ser trilhado, consulta mapas, elabora planos, reúne equipamentos e embarca rumo ao desconhecido. Para coletar o material que compõe Arrasto, percorreu a jusante do Rio Tietê, desde a nascente na Serra do Mar, em Salesópolis, fazendo pausas na capital e em mais sete cidades do interior, até chegar à sua foz, na divisa com o Mato Grosso do Sul. Penso que o processo de investigação desenvolvido pelo artista dentro do terreno explorado produziu um conteúdo maior do que a obra possa registrar. Enquanto explorava as margens do rio – ora margem direita ora esquerda, alternadamente – Moscheta lançava seu olhar para todos os tipos de marcas e intervenções causadas sobre a paisagem e sobre o leito do rio, documentava imagens e arquivava informações numa espécie de diário de viagem formado por anotações escritas, registros de GPS sobre coordenadas geográficas, fotografias de paisagens quase intocadas ou com toda sorte de ação humana: urbanização, poluição, invasão das margens, linearização, cercamento, represamento. Ao longo da pesquisa de campo, o artista, compreendendo a importância do conteúdo levantado, disponibilizou imagens e observações – que não constam na instalação final – pela rede social, e assim compartilhou uma parte de seu método de trabalho e ofereceu elementos para ampliação da leitura de sua obra.

A investigação de Moscheta estende-se para além da pesquisa de campo e adentra nos pequenos museus universitários de geologia, buscando referências nos precários mobiliários e métodos de exibição utilizados por essas empobrecidas instituições museológicas, principalmente do interior do país, que, desamparadas pelo poder público, guardam ricos acervos em condições improvisadas. Manobrando com esses referenciais, o artista trata os materiais coletados com procedimentos de catalogação e de exibição que lhes conferem certo aspecto de amostragem científica, amadoristicamente arranjada.

Arrasto é composta por um desenho ladeado por duas estantes, posicionadas à sua esquerda e sua à direita. Com modelo emprestado da improvisação museológica antes mencionada, as estantes/gambiarras, feitas com uma mistura de madeiras velhas e novas, funcionam como móveis confeccionados para cumprirem a função de aparato expositivo, sustentando em suas prateleiras a apresentação das muitas e variadas amostras coletadas nas margens do rio: rochas, pedras, areia, torrões de argila, pedaços de tijolos, de calçadas, de asfalto e de concreto. As peças escolhidas são minerais em estado bruto ou materiais derivados de minerais minimamente processados pela técnica humana. A escolha do artista ressalta a passagem da natureza à cultura, enfatiza a paisagem como noção espacial formulada pelo pensamento humano e produzida por sua ação no mundo. A opção de Moscheta por amostragens de origem ou de derivação mineral aponta para a particular relação espaço-tempo contida nestes elementos da paisagem: as rochas que se desgastam em pedras que se desfazem em areia, possivelmente, são anteriores à época em que o curso do rio se formou, e assim guardam o a memória mais remota daquele lugar.

No processo de recomposição da paisagem na obra, os materiais coletados nas margens esquerda e direita do rio são exibidos, respectivamente, nas estantes posicionadas à esquerda e à direita do desenho, e assim eles se apresentam como autênticos fragmentos da real paisagem em torno do Rio Tietê. Cada uma das amostras está identificada por etiquetas de papel em que estão registrados códigos de GPS informando coordenadas geográficas sobre latitude e longitude, data e hora em que foram coletadas. Produzida a partir de procedimentos poético/científicos que resultam na exposição de uma coleção de objetos reunidos pelo fato de estarem no percurso trilhado pelo artista, Arrasto se posiciona no campo das práticas de arte contemporânea que empregam metodologias museológicas com a finalidade de instalar um museu no corpo da obra de arte, fundindo as duas instâncias.

Para realizar o grande desenho disposto no centro da instalação, Moscheta vasculhou acervos de museus públicos, encontrados em algumas cidades que margeiam o Rio Tietê. Estava em busca de registros da memória visual do rio afixados em fotografias feitas em diversos momentos do passado. Procurava pela imagem capaz de traduzir o abrupto processo de transformação do rio, e que revelasse sua paisagem original como “um fantasma, submerso e em estado de latência”[1], segundo suas próprias palavras. A paisagem transferida para o desenho presente em Arrasto é baseada em uma antiga fotografia p/b do Salto do Avanhandava, sem autoria e sem datação, coletada no acervo do Museu Histórico e Pedagógico de Penápolis. Paisagem de um lugar que não existe mais. O salto, que era atração turística na região, foi inundado entre o final dos anos 70 e início dos anos 80 com o represamento do rio para a construção da Usina Hidrelétrica Nova Avanhandava, inaugurada em 1982, no município de Butirama. Submerso e quase esquecido, o Salto do Avanhandava foi retirado da amnésia e atualizado por Moscheta no desenho impactante, que se impõe pela intensa energia plástica produzida pelo ajuste dramático de luz e sombra, resultado do atrito do carvão sobre a superfície da qual a luminosidade irradia. Em termos plásticos, a imagem produzida pelo artista é muito superior à fotografia tomada, que em si não possui valor estético. A paisagem do salto também foi resignificada pelas relações que mantem com as amostras de materiais coletados nas margens do rio, e dispostas nas estantes laterais. Exposto no centro da instalação, o desenho da paisagem do Salto Avanhadava evoca o tempo em que o Rio Tietê fluía pelo seu leito sem obstáculos.

Por fim, é importante pensar o quão relevantes são os diversos papéis desempenhados pelo desenho e pela fotografia na produção de Marcelo Moscheta. Rigorosamente técnico e expressivo, embasado e com pleno domínio dos elementos e dos recursos plásticos, o desenho é a linguagem estruturadora de muitos trabalhos do artista e com o tempo adquiriu autonomia ou passou a ser vinculado à fotografia e à instalação. Já as imagens fotográficas sempre estiveram no banco de imagens colecionado por Moscheta como fontes imagéticas para obras realizadas em quaisquer categorias por ele trabalhadas. Tanto o desenho quanto a fotografia são empregados como meios para conseguir a hibridação de categorias e para realizar a transposição de uma imagem de um meio para outro. O procedimento de apropriação da fotografia retirada do Museu de Penápolis e sua transcrição/interpretação para o desenho encaminha a reflexão aos problemas contidos no uso de imagem de segunda geração, como autoria e impessoalidade; entretanto a maneira como Moscheta recria a imagem da fotografia por meio do desenho, transforma-a numa outra imagem, potente e carregada de subjetividade, autoral por excelência, que é metáfora da existência do corpo do próprio artista em seu deslocamento pelo percurso do rio, arrastando coisas que resistiram à força das águas e que acabaram ancoradas nos sedimentos de suas margens. Como um artista romântico, Marcelo Moscheta percorreu o curso do rio que corre para o interior em busca de sua própria imagem interior, em permanente fluir. Sua procura se assemelha à de outro amante da paisagem e da natureza, o poeta William Wordsworth, quem nos disse “encontrar na natureza e na linguagem dos sentidos o cerne deste meu ser moral”[2].

Goiânia, setembro de 2015

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS

[1] Depoimento do artista em e-mail enviado ao autor, em 03/09/2015.
[2] William Wordsworth. Poesia selecionada, Tradução Paulo Vizioli. São Paulo; Edições Mandacaru; 1988. Pag. 35.

 

* As imagens publicadas aqui, inclusive a de chamada, foram extraídas do site de Marcelo Moscheta: https://www.marcelomoscheta.art.br/arrasto.

 

Divino Sobral (Goiânia, Goiás, 1966) é artista visual e desenhista. Autodidata, desenvolve trabalhos como pesquisador, crítico e curador independente. Sua obra, que transita entre desenho, pintura, escritura, objeto, escultura, instalação e performance, reúne elementos de sua memória pessoal entrelaçados com a mitologia (como um modo de estabelecer metáforas de um controle imaginário do tempo e do espaço) e com a história, quase como uma reconstituição da estética medieval. Em 2003 foi selecionado pelo Programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, em 2005 recebeu o Prêmio do Festival de Bonito e, em 2009, o Prêmio de Artes Plásticas Marcantonio Vilaça. Realizou mostras individuais no Museu de Arte de Goiânia (2010), Centro Cultural Banco do Nordeste, Fortaleza (2010), Centro Cultural Banco do Nordeste, Juazeiro do Norte (2009) e Museu de Arte Contemporânea de Goiás, Goiânia (2004).