Os que se juntam afim de colocarem em marcha uma iniciativa de arte independente frequentemente enxergam a colaboração e a auto-organização como meios através dos quais é possível materializar intenções. Para Flavia Vivacqua, “um espaço autônomo torna-se um espaço intencional na medida em que ele se reconhece, determina seus campos de atuação, suas formas organizativas e, consequentemente, suas ações. Além de se autonomear, como quem faz ajustes de rota em pleno vôo, ele se define e se redefine no processo, a partir de princípios e propósitos sempre revisitados como critérios de validação e valoração das decisões nas quais os acordos e o trabalho se desdobram”[1].
No campo da arte, a auto-organização pressupõe a formação de um grupo coeso: propósitos devem ser compartilhados, intenções e desejos alinhados. É importante também que, socialmente, o convívio dentro do grupo seja agradável, uma vez que, dentro deste universo, trabalhar com prazer é um pressuposto, o normalmente vivenciado, e não algo que se almeja. A partir daí, afim de desenhar um modelo organizacional, é prudente que os envolvidos considerem o contexto onde estão imersos e os recursos disponíveis – sejam eles financeiros, móveis, imóveis ou humanos, ou seja, as bagagens e capacidades de cada um dos envolvidos, incluindo seu conhecimento acerca de metodologias de trabalho, modelos organizacionais e práticas, até mesmo as artísticas.
Por vezes, estas iniciativas tomam a forma de espaços de arte que, costumeiramente guiados pela busca por autonomia e liberdade, evitam criar estruturas rijas e hierárquicas, sendo, frequentemente, de caráter privado mas de acesso público e, por vezes, voltados para a comunidade do entorno. Mas os espaços de arte também podem tomar a forma de revistas ou publicações diversas (impressas ou digitais), dispositivos móveis e ocupações, como já abordado anteriormente. Antes de falarmos da auto-organização no campo da arte, porém, cabe entendermos um pouco mais sobre a auto-organização em si.
Foi no contexto da cibernética[2], em um artigo de 1946 do inglês W. Ross Ashby[3], que ocorreu a primeira aparição do termo “auto-organização”. O artigo, escrito quando Ashby era ainda um psiquiatra, começa assim: “Tem sido amplamente negado que uma máquina possa ser ‘auto-organizativa’, isto é, que ela possa ser determinada e mesmo assim sofrer mudanças espontâneas de organização interna. A questão de se isso pode ocorrer não é de interesse apenas filosófico, pois este é um problema fundamental na teoria do sistema nervoso. Há bastante evidência de que este sistema é (a) um sistema físico-químico estritamente determinado [ou seja, determinista[4]], e (b) que ele passa por reorganizações internas ‘auto-induzidas’ que resultam em modificações de comportamento. Às vezes sustenta-se que estas duas exigências são mutuamente exclusivas.” (Osvaldo Pessoa Jr., 2001)[5]
Do contrário, como seria possível um sistema determinista modificar “espontaneamente” sua organização interna? De acordo com Ashby, citado por Osvaldo Pessoa Jr., basta que alguma das variáveis determinantes do sistema não seja observável. Se isso ocorrer, apesar de, aparentemente, o sistema se comportar de forma espontânea, na verdade ele está sendo influenciado pela variável não detectada. Dentro do contexto da gestão de espaços de arte independentes, são muitas as variáveis de difícil detecção.
Da cibernética para as organizações sociais temos, na parte 1 de There is no alternative: the future is self-organized[6] (2005), espécie de manifesto de Stephan Dillemuth, Antony Davies e Jakob Jakobsen (em tradução livre para o português): “a auto-organização não deve ser confundida com auto-empreendimento ou auto-assistência, não é uma alternativa ou um condutor ao mercado. Não é um selo, logo, marca ou bandeira sob a qual é possível navegar pelas águas do neoliberalismo (…) Não tem qualquer relação com o empreendedorismo ou falsos ‘coletivos de carreira’. (…) Oferece um espaço para uma repolitização radical das relações sociais – os primeiros passos em direção a liberdades realizáveis.” Para os autores deste manifesto, “a única maneira de relacionar-se com as auto-organizações é participando, auto-organizando-se, conectando-se com outras iniciativas auto-organizadas e desafiando a legitimidade da representação institucional.”
O icônico discurso de Hakim Bey em Temporary Autonomous Zone ou TAZ, de 1990, foi um dos primeiros textos a que tive acesso e que fala, não exatamente nestes termos, em auto-organização aplicada à sociedade. Ele define a TAZ como uma “operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, ‘ocupar’ clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por gerações – como alguns enclaves rurais – porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação.” Assim, vejo as TAZs como ilhas: áreas, não necessariamente físicas, inacessíveis que se encontram em estado anárquico[7] por um período determinado de tempo, em geral curto. Como ilhas, não colocam-se em rede, isto é, não estabelecem relações de dependência, sendo, portanto, auto-suficientes: são começo, meio e fim.
Mas a auto-organização também pode ser associada ao liberalismo utópico. Para Aluisio Almeida Schumacher (professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp), “o liberalismo utópico, por fim, expressa a utopia de uma sociedade civil imediata a ela mesma, quer dizer, autorregulada/auto-organizada de modo mais ou menos automático. O modelo dessa representação é o da sociedade de mercado: o que regula/organiza a sociedade é o mercado (economia) e não a política. De modo que o mercado é o regulador da sociedade e não só da economia. Na verdade é o liberalismo utópico enquanto representação da vida social que constitui a verdadeira fonte da ligação entre liberalismo e autorregulação/auto-organização.”[8]
E já que chegamos aqui, vale a pena rever o conceito de economia de mercado. O economista austríaco Ludwig von Mises afirma que “a economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é, ao mesmo tempo, um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.” E ainda: “todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem-estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.” (apud Aluisio Almeida Schumacher, 2013)
Ao olhar para o futuro, o filósofo francês octogenário André Gorz vislumbra a criação de uma sociedade cognitiva, entendida por ele como uma sociedade comunista. Segundo ele, na chamada economia cognitiva “os parâmetros econômicos tradicionais não são válidos. A principal força produtiva – o saber – não é quantificável: a atividade laborativa fundada no saber já não pode ser medida por horas de trabalho. E, apesar de todos os possíveis artifícios, a transformação do saber em capital – capital monetário – encontra alguns obstáculos insuperáveis. Dentro em breve, as três categorias fundamentais da economia política – o trabalho, o valor e o capital – não mais poderão ser definidas em termos aritméticos, nem medidas por parâmetros unitários. Além do mais, justamente em função dessa característica de não mensurabilidade, fica cada vez mais difícil aplicar conceitos como mais-valia, sobre-trabalho, valor de troca, produto social bruto. Quando os especialistas em macroeconomia procuram quantificar com os instrumentos tradicionais os resultados econômicos e os padrões de desenvolvimento, estão, na realidade, tateando no escuro. A economia cognitiva representa de fato uma crise de fundo do capitalismo e antecipa uma outra economia, de tipo novo e ainda a ser fundada. E é a esse respeito que se desenvolve o debate mundial sobre o que é de fato a riqueza, e a que critérios deve corresponder. A economia tem sempre mais necessidade de parâmetros qualitativos que quantitativos”[9].
Sobre o saber, Gorz diz que, na sociedade cognitiva, não se trata de “uma mercadoria qualquer e não se presta a ser tratado como propriedade privada. Aqueles que possuem o saber não se privam de continuar transmitindo-o indefinidamente. Quanto mais se difunde o saber, mais rica se torna uma sociedade. Por sua própria natureza, o saber necessita ser tratado como um bem comum, precisa ser considerado, antes de mais nada, como o resultado de um trabalho social e coletivo. Privatizá-lo quer dizer limitar sua acessibilidade, seu valor de uso social”[10].
Ainda segundo o filósofo, “muitas empresas já vêm trabalhando em boa medida no âmbito de redes, unindo-se nos momentos de tomada de decisão. A auto-organização, a auto-coordenação e a livre troca estão hoje na base da produção social. E são realizados sem a necessidade de um planejamento central nem da intermediação do mercado. Os produtores, que se relacionam entre si em redes, colocam-se em comum acordo preventivamente e de maneira pactuada para produzir em função das necessidades, desenvolvendo sua função produtiva como um complexo de atividades essencialmente coletivas, promovendo um intercâmbio de bens e serviços sem que tenha sido previamente acertado o caráter dessas mercadorias. O dinheiro torna-se então supérfluo, e o capital teria assim sua própria base capturada. Ainda que não subestimando os obstáculos implícitos em um desenvolvimento deste gênero”[11]. E é aí que auto-organização e comunismo aparecem na mesma frase.
Por fim, há também quem coloque a auto-organização como instrumento inovador do neoliberalismo. Mas por não acreditar nos frutos desta “parceria”, me permitirei não abordá-la aqui. Entendo que o poder dado ao mercado, seja pelo liberalismo utópico, seja pelo neoliberalismo, e a expectativa de promoção do bem comum através de sua orientação e mediação, pode ser visto de duas formas: com olhos perversos, através dos que, com seus privilégios, enriquecem e exercem domínio através do mercado; ou como sonhadores, para quem mantém a confiança na capacidade da raça humana de entender o macro, de entender que o bem comum é o mesmo que o próprio bem.
Independentemente do alinhamento com o anarquismo, o liberalismo utópico, o comunismo ou mesmo o neoliberalismo, vejo a auto-organização como uma ferramenta estratégica legítima para aqueles que querem autonomia para implicar sua força de trabalho. E, acima de tudo, como uma forma de viver, pensar e agir em sociedade que, uma vez disseminada, carrega o poder de suavizar pólos e unir pontas em solos comuns, compartilhados pelos que buscam agir sobre os contextos em que vivem. Isto significa que a auto-organização, se replicada infinitamente, poderia desencadear um processo massivo de descentralização do poder em favor da autonomia dos indivíduos e de suas redes intencionais.
Seguindo esta linha de raciocínio mais pragmática e empoderadora dos indivíduos, Joss Colchester, pesquisador em sistemas complexos e design thinking, afirma que a “auto-organização é um tipo de formação de padrão, um meio através do qual alguma forma de ordem ou coordenação é desenvolvida. Existem, essencialmente, apenas dois métodos básicos através do qual a coordenação social e a ordem podem ocorrer. Dentro de sistemas lineares, pode ser imposta, do topo para a base, por alguma autoridade global centralizada; ou dentro de sistemas não-lineares, pode emergir da interação de agentes em nível local, da base para o topo. E isso é auto-organização. Portanto, a auto-organização é um processo não linear de formação de padrão.”[12]
Parto então da hipótese de que são quatro as motivações mais frequentes entre os indivíduos que hoje optam por integrar uma iniciativa coletiva auto-organizada, dentro de um sistema não linear:
- O desejo por estabelecer relações de trabalho horizontais e eficientes. Os indivíduos que se auto-organizam com essa premissa consideram os modelos tradicionais, baseados em sistemas hierárquicos e na retenção do saber, insatisfatórios, insuficientes e/ou inválidos.
- A dependência de órgãos, instituições e políticas públicas para projetar, produzir, desenvolver, aprimorar e/ou difundir seu trabalho. Os indivíduos que compartilham desta motivação, por um motivo ou outro, estão insatisfeitos com os serviços oferecidos pelo poder público e compartilham da crença de que é possível preencher as lacunas, percebidas dentro de um contexto específico, através da iniciativa auto-organizada de um grupo de indivíduos, mesmo que esta iniciativa dependa, de alguma forma, de recursos públicos.
- A busca pela autonomia. As pessoas que se auto-organizam com esta finalidade pretendem dar vazão aos seus interesses, intenções e desejos dentro de um ambiente regido por um conjunto de valores e regras próprias, compartilhadas pelo coletivo.
- A insatisfação diante do sistema ou lógica sócioeconômica instaurada. Os que se auto-organizam por esta razão, em geral entendem que o sistema capitalista neoliberal instaurado fracassou e buscam outros modelos que materializem ideologias e visões políticas não contempladas. Organizações com motivações político-ideológicas se caracterizam como zonas de resistência e, frequentemente, buscam gerar tensão ou mesmo implodir o sistema; seguem regimentos próprios e almejam a justiça social e o compartilhamento dos saberes.
No caso dos que se auto-organizam em torno da arte – foco desta pesquisa – acredito que, frequentemente, as quatro motivações possam estar presentes, em doses diferentes, caso a caso. Para além das motivações ou necessidades pragmáticas e genéricas, há um campo de força específico que envolve a arte – intrínseco à ela, de natureza não reativa –, alimentado e movido pelo impulso dos que a praticam, de criar, reflexionar e propor. Ao mesmo tempo, o agente da arte é impelido a se auto-organizar para atender ao impulso, este campo de força; tonificado pela coletividade, ele alimenta e abraça o presente e o futuro das iniciativas auto-organizadas para a arte.
Sendo assim, é provável que a auto-organização exista dentro do campo da arte não desde o começo de seu desenvolvimento na Pré-História, mas sim a partir do fim da Idade Antiga ou Antiguidade, quando artistas gregos e maias[13] passaram a refletir sobre as manifestações artísticas e transformá-las. Ali, a arte já estava ligada à vida e ao intelecto, e os artistas buscavam o constante aprimoramento de suas técnicas.
À natureza criativa do ofício do artista estão intrínsecas as práticas do questionamento, da invenção e, por vezes, da transgressão, que o mantiveram à certa distância, ora maior, ora menor, do restante da sociedade. O artista que alimenta estas práticas e resguarda o autogoverno da arte[14] certamente experimentará, mesmo que por alguns momentos, o gosto da margem. E a marginalização, em qualquer âmbito da sociedade, é certamente um estímulo à auto-organização. A associação desta veia marginal da arte com seu espírito propositivo levanta a suspeita da auto-organização ser, por fim, inerente à própria arte.
Desde a virada do século, as iniciativas e espaços de arte independentes vêm pipocando nas grandes cidades, configurando a formação de uma cena de artes visuais independente brasileira. Ano após ano, a formação de redes de colaboração entre iniciativas brasileiras e estrangeiras se intensificou, colocando em evidência a cena brasileira no âmbito da América Latina. Entender o processo de transformação do campo da arte sob a ótica da auto-organização é olhar para os desejos, intenções e propósitos dos artistas no tempo.
*Texto escrito em 2017, parte da pesquisa CÓRTEX (www.cortex.art.br).
**A imagem de chamada desta publicação é de Jurandy Valença, posteriormente manipulada por Maíra Endo.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Em “Espaços intencionais e a manifestação da cultura da colaboração – piquenique”, publicado em “Indie.gestão: práticas para artistas/gestores ou como assobiar e chupar cana ao mesmo tempo”, de 2014. Download disponível em: http://www.jaca.center/publi/.
[2] Cibernética é a ciência que estuda os mecanismos de comunicação e de controle nas máquinas e nos seres vivos, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://priberam.pt/dlpo/cibern%C3%A9tica (consultado em 24.04.2017).
[3] Em “Principles of the Self-Organizing Dynamic System”, artigo de 1947 publicado no Journal of General Psychology 37.
[4] Determinismo, segundo Osvaldo Pessoa Jr., é um conceito que se refere ao mundo, ao real, ao sistema sendo considerado, e não ao nosso conhecimento, à nossa capacidade de previsão. Isso significa que um sistema determinista pode ser imprevisível. Em “Auto-Organização e Complexidade: Uma Introdução Histórica e Crítica”, texto de 2001 (http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/AO&C-tex.pdf).
[5] Professor Associado no Departamento de Filosofia da USP (2003-), em “Auto-Organização e Complexidade: Uma Introdução Histórica e Crítica”, texto de 2001 (http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/AO&C-tex.pdf).
[6] Em tradução livre, “Não há alternativa: o futuro é auto-organizado”.
[7] Estado anárquico, aqui, entendido não como a ausência de ordem, mas sim como ausência de domínio, coerção e privilégios.
[8] Em “Auto-organização, reconhecimento social e autonomia intersubjetiva”, em artigo de 2013 (http://www.ibb.unesp.br/Home/Departamentos/Educacao/Simbio-Logias/auto-organizacao-_reconhecimento_social_autonomia_intersubjetiva.pdf). Acessado em 15.02.17.
[9] Em entrevista publicada na Glob(AL) América Latina, número (1), outubro/novembro 2003. Para download, acesse https://issuu.com/globalbrasil/docs/global_01.
[10] Na entrevista citada em nota anterior.
[11] Na entrevista citada em nota anterior.
[12] Em “Social Self-Organization,” in Complexity Academy, March 6, 2016, (http://complexityacademy.io/social-self-organization/).
[13] E provavelmente outras civilizações que não são de meu presente conhecimento.
[14] Não confudir autogoverno com isolamento ou alienação cultural: o artista pode resguardar o autogoverno da arte sem se isolar socialmente, ou a sua produção.