programa performativo performance arte
pensamento esquizo biopolítica
O presente ensaio aspira compartilhar um sistema de criação cujo princípio poético é o pensamento e o modo de ser esquizo. Tal sistema situa a esquizofrenia como uma episteme desterritorializada e imanente, capaz de descolonizar o pensamento, subverter a linguagem e, por conseguinte, abrir campo para ressignificação simbólica e restauração do imaginário singular.
FRACTAL BODY | Indiscernible movements for tacit guerrilla | The present essay intends to share a system of creation whose poetical principle is a schizophrenic form of thought and being. Such system places schizophrenia as a deterritorialized and immanent episteme capable of decolonializing thought, subverting language and therefore capable of opening a field for symbolic resignification and restoration of the singular imaginary. | Performative program, performance art, schizo thoughts, biopolitics.
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capital.
coreografar as vísceras até a exaustão
dizem quando é loucura tudo cai no poço do esquecimento então basta engolir a mão de punho cerrado e ao chegar no estômago abrir os dedos o máximo possível para retirar de dentro todas as palavras desacreditadas palavras-delírios afogadas compulsoriamente entre o impulso e o medo
o pesadelo neoliberal
os delinquentes capitalizados nos invadem nos invadem a todo momento ultrapassam e como são educados em suas camisas brancas engomadas (sqn) e como falam bem em rede rádio televisão (sqn) e como fazem rodopiar processos numa escalada ascendente rumo à grande nuvem por trás de superfícies e vales de silicone e couro infinitas equações matemáticas infinitos javascripts geometrias em espessuras abissais cujas narrativas são apreendidas pelos olhos estrábicos do esquizo apagam os rastros manipulam eleições grandes ambiências performativas do telejornal ao encontro de artistas estupradores do mercado das carnes que cagam mole admitindo a convulsão da vulnerável 217-A 147 173 215 mas como são educados em suas fraudes brancas engomadas e como falam bem em rede rádio televisão são muito bem relacionados contatos enquanto nós gritamos em contorções babando a bile para ter o que comer
Willian Downer sorria sedutor enquanto anunciava o certeiro golpe de direita 2013 leem nossas mensagens clonam nossas camerawebs drones nas matas que pegam fogo em papa-móveis eles sabem eu sei está acontecendo e trocarei de roupas até infinito enquanto atentado ao pudor ônibus praça padaria finanças rua metrô de pavuna condomínio azul e seus pequenos clusters dispositivos de controle pinho sol é o kralho Rafael Braga somos nós
as telas da psiqui-arquia no box 24/7 quadros por segundo da Praça Roosevelt ao facebook da Cronópolis trabalhando para <div classes> <hidden scores> <recruiting bodies> <offers no reactions> <targeting audience manager funnel> marketing ou a oikonomia do invisível: algoritmos performam imagens de: outros corpos que desejam: corpos que podem produzir corpos: da diferença na indiferente beleza dos infinitos inframinces espectrovirtuais organizados estrategicamente no espaço caleidoscópico quase afroguarany excesso de onipresença do deus www.escassezdesentido.net capitalizando os dados navegados como uma grande heterotopia à espera de um não-sei-o-quê no meio do oceano opaco da web
As atualizações da vivência virtual ocorrendo à taxa de 60Hz dos monitores menos modernos as tornam hiper-realizadas de experimentações em representação simbólica de vivências. Daí parte da sua hipnose. Outra advém da população empregável no registro das admissões como entrevistas de emprego, editais, licitações; e na mais jovem como treino para o ministério do controle do tempo [também conhecido como mercado de trabalho].[i]
vida habitada de fetifunção encapsula o indivíduo na árdua tarefa de levar a grande rocha até o topo da barra de rolagem para deixá-la scroll down e assim tornar-se mais uma obsolescência programada da grande matrix organizada: produtora de sensações: promotora de estado de espírito: organizadora de manifestações online: facilitadora de propagação de abaixo-assinados: companheira nos elos sentimentais: espectadora dos 15 segundos de fama nós pe(s)cadores de precisão montadores delirantes criamos organismos-cracks monstros engolidores de matérias para instauração da escura visão tátil aboliremos centenas séculos de desenvolvimento não nos igualaremos ao Sol faremos justiça à eterna dança da rotação da Terra para assim nos abrirmos ao caos galáxias criadas ao explodirmos nossos órgãos-estrelas
C://
start
system and security
disable remote control
don’t allow connections to this computer
enter[ii]
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A imaginação é uma espécie de negritude da razão, seu movimento é indisciplinado ou selvagem, apagão do raciocínio (já vimos, com a noção de Deleuze de escuridão-liberdade-potencialidade, como a escuridão atrai a imaginação desenfreada). Assim, a fotofilia constitutiva da iluminação, é o encobrimento do mundo como fotologia reificada da razão, revelando um inconsciente estético-racista e sustentando toda uma formação política que abomina a negritude (racial) como escuridão (civilizacional) e desarranjo (da razão).[iii]
Os corpos do delírio, assim como os corpos negros, sempre estiveram do lado obscuro do projeto moderno de poder da Europa Ocidental. A violência da colonização sobre nossos saberes esteve (e continua presente) na base da expansão do pensamento universalista europeu (séculos 16 e 17), coincidindo com a implementação de hospitais gerais pela Europa e com a exploração colonial na África e nas Américas. Trancar a boca de um negro ou de um sujeito do delírio é imagem do silenciamento e construção de suas histórias a partir do ponto de vista conveniente às instituições de poder.
Mesmo hoje em dia, as relações entre centro e periferia se mantêm na chamada colonialidade global. O “capitalismo global contemporâneo ressignifica, em um formato pós-moderno, as exclusões provocadas pelas hierarquias epistêmicas, espirituais, raciais/étnicas e de gênero/sexualidade implementadas pela modernidade”.[iv] Tal domínio só foi possível prolongar-se, segundo o pensamento decolonial, porque se trata de uma rede que engendra múltiplos regimes culturais, políticos, econômicos e de poder, onde a linguagem “sobredetermina, não só a economia, senão a realidade social em seu conjunto”.[v] A proposta decolonial, desenvolvida dentro do grupo Modernidade/Colonialidade[vi] acredita, pois, que a descolonização foi operada apenas na instância jurídico-política e faz-se urgente a instauração de processos de ressignificação simbólica para uma descolonização completa; o que inclui encontrar novas linguagens que deem conta de novos conceitos e que estes permitam fruir num mesmo espaço-tempo gêneros, etnias e epistemes múltiplas.
O delírio sob essa perspectiva seria a expressão do corpo frente a tais violências instituídas, o modo encontrado pelo corpo (esquizo) para manter vivo o pensamento, manter o pensamento pensando e produzindo conhecimento singular. Por se tratar de um saber que nasce da ação do corpo que, por sua vez, move o pensamento, é um saber visceral que provoca choques no pensamento e o amalgama a si: não há como os separar, corpo e pensamento são como corpo cósmico oscilando entre o caos e o ritmo, entre a quebra e a composição. A metamorfose do corpo modifica o pensamento e vice-versa. O conhecimento do delírio é pautado pelas imagens que esse corpo em movimento cria no pensamento, portanto não é um saber que se pensa de fora, ele cria o fora a partir da compreensão de um todo movente, ele capta o todo e o fragmenta, é um saber imanente e infinito em sua capacidade de criação, um saber a partir da intuição que instaura um novo modo de pensar e de enunciar, mais próximo às epistemologias mágicas pré-coloniais.
_______ Sistema
É preciso o sistema, e é preciso o excesso.[vii]
Corpo fractal é um sistema generativo utilizado na criação do filme-performance Elegia obscena e também em minha experiência cotidiana. Ele tem nas qualidades da esquizofrenia – delírio e sensação de vigilância e controle – seu princípio poético. Seu esquema de montagem atua no ato de ver/ser visto (pois, assim como propõe Foucault, o indivíduo, ao sentir-se visto, regula seu comportamento, princípio de ação dos processos de subjetivação, disciplinarização e controle), e se desdobra em novos agenciamentos com o ideário luminoso e de circulação de capital. Por se tratar de um sistema fruto dos mecanismos de iteração da sociedade do controle, ele considera o indivíduo autorreferente, sujeito e objeto de si mesmo, cujo corpo, matéria bruta e sutil, é entendido para além da sua voluminosidade. É um corpo que se fragmenta e se desdobra no ambiente físico e digital (internet, telas, celulares), em que operações de divisão e extensão obedecem à lógica fractal. Como sugere Brian Massumi:
O “eu” dessa autorreferencialidade é de um tipo qualitativamente diferente, que inclui operacionalmente em si mesmo outros corpos humanos individuais, assim como computadores, linhas telefônicas, eletromagnetismo e qualquer quantidade de elementos heterogêneos; forças, objetos e órgãos. O corpo-self foi conectado a uma rede ampliada. Como sujeito-objeto fractal, o corpo é a rede – uma rede-de-si.
(…)
O corpo fractal faz com que essa extensiva mutalidade se expresse plenamente. É precisamente a expressão completa desse aspecto do humano que o torna pós-humano. A rede-de-si expressa extensibilidade a um grau acima do humano. Mas a reciprocidade extensiva que está para além do humano é uma característica de toda coisa que percebe, posto que é capaz de mudar. A extensão até o pós-humano é, portanto, a expressão plena de uma pré-humanidade do humano. Ela é a expressão-limite do que o humano compartilha com cada coisa que não é humana: saindo da sua inclusão na matéria, seu pertencimento no mesmo mundo material autorreferente em que cada ser se desdobra. As potenciais extensões ciborgues do humano, uma vez que entraram em um estado hipermutavelmente aberto, são existencialmente ilimitadas. A rede-de-si é um mundo do humano, a Lua é o limite, ou talvez não. Tendo contra-atacado a força da gravidade da Terra, o mundo do corpo pós-humano está em sua própria órbita: o devir-planeta-humano.[viii]
Trata-se de um sistema paradoxal porque alia elementos de intensidade aos elementos de exterioridade, é um “dispositivo que torna interior o espaço exterior, e reciprocamente”.[ix] Ele nasce não como um devir-planeta, como sugere Massumi, mas como um buraco negro;[x] é um corpo cósmico – uma estrela densa e brilhante que, com o passar do tempo, teve suas singularidade e intensidade esmagadas pela gravitação (capitalística) e, por não suportar tanta (com)pressão, implodiu, originando um buraco negro massivo e em rotação devoradora (seu estado opaco e delirante). Assim como o buraco negro, um sujeito, quando engrenado ao Corpo fractal, possui a propriedade de preservar sua singularidade no abismo desconhecido de seu mundo abstrato, o que, para quem observa de fora, cria graus de opacidade, ao passo que é capaz de capturar quaisquer estímulos que estejam inscritos no seu horizonte, como uma kinesfera expandida – desde a molécula mais interna do corpo (soma) até o limite da visão, seu mundo concreto – e dilacerá-los, profaná-los, criando um emaranhado aparentemente caótico entre interioridade e exterioridade, intensidade e matéria, os ruídos. O efeito é de contradição; um corpo opaco e ruidoso, na verdade, é complementaridade plástica, tendências que conferem ao sistema o “poder de conexão até o infinito, em todos os sentidos e em todas as direções”,[xi] e que corrobora o aumento dos fluxos de intensidade (energia) impelindo-o à (radi)ação.
O sistema Corpo fractal é composto por elementos que estão divididos em quatro núcleos, de acordo com suas naturezas. São eles:
. Disparadores:
São os elementos que perturbam o sistema para colocá-lo em ação. Argumento e instruções para performance, no projeto Elegia obscena.
. Engrenagens:
São os meios de produção da ação. Por se tratar de elementos muito heterogêneos, as engrenagens conferem ao sistema alta complexidade e abertura ao acaso. Sem muito planejamento, trabalha-se com o que se tem em mãos, numa lógica de bricolagem.
. Atratores:
Tendências da performatividade esquizo do sistema: opacidade e ruído. São produtos, respectivamente, das biopolíticas de controle e do delírio, são (de)formações imanentes de um corpo em constante (de)composição. Eles atuam no gesto ver/ser visto e pretendem romper com a linearidade da narrativa, ampliando a distância entre signo e sentido e desestabilizando os processos de subjetivação levados a cabo pelas instituições de governamentalidade.
A vertigem e a violência do sistema estão nas operações que ele realiza ao colocar em contato o corpo do indivíduo com as coisas do mundo, rompendo a dicotomia sujeito-objeto e deixando seus contornos indefinidos. A plasticidade do sistema se dá não pelo conjunto de elementos que o compõem, mas pelo movimento informe de seus elementos formais. Assim como o inconsciente é o movimento informe do pensamento no sujeito; como as fragmentações, metamorfoses, justaposições, movimentos que visam deformar ou invisibilizar o sujeito-objeto, como explica Didi-Huberman: “o informe de modo algum qualifica termos – ‘coisas informes’ enquanto tais – e sim relações: o informe não é nem uma pura e simples negação da forma, nem uma pura e simples ausência de forma”.[xii] O informe é, assim, a forma e a consciência racional, a concepção de corpo e de razão burguesa, sendo negadas dialeticamente. Destroçar o corpo, desorganizá-lo; arrancar-lhe a cabeça ou provocar a discórdia violenta dos órgãos, assim como propões Bataille. Ou romper com as funções de organização, com o organismo, propondo um “corpo-sem-órgãos”, como enfatiza Artaud; tudo isso para liberar os fluxos de intensidade e criar novas realidades a partir do imaginado do delírio.
Ao instaurar opacidade e ruído como moventes do sistema, o que se propõe é mitigar a linguagem ordinária e todos os seus códigos rumo ao esquecimento e devolver ao sujeito da experiência performativa (ou cotidiana), o princípio incontrolável do sensível, da sensação e do pensamento esquizo, em que, de um lado, estão as sensações de vigilância e controle que movem a criação de um vão opaco entre exterioridade e interioridade, e, de outro, as derivas do delírio (pensamento-imagem) editando fragmentos de imaginação e fragmentos de mundo concreto.
. Fractais:
Correspondem às cenas, dispositivos coreográficos e instalações performativas de Elegia obscena e, conceitualmente, aos nós da “rede-de-si”, e são produtos da performatividade dos atratores ao combinar disparadores e engrenagens. O humano está fractalizado.
Essa rede-de-si é como uma pele virtual e invisível, e os poros são os nós dessa rede. Se utilizarmos o princípio holográfico de um buraco negro, a rede-de-si corresponde à superfície (x, y) do horizonte de eventos em que cada bit de informação nela contido – que seria um holograma ou nó da rede – tem sua partícula gêmea no volume interior (x, y, z) à singularidade desse mesmo buraco negro. Nesse raciocínio, cada nó ou holograma da rede-de-si carrega consigo potencial suficiente para engendrar um fractal do filme, ou seja, carrega uma informação viva do interior da singularidade – é como um rastro. Ao ser espacializados, os Fractais ampliam a (s)kinesfera do filme-performance, estabelecendo distâncias entre as cenas. Uma vez em que o espect-ator está mergulhado nesse espaço instalativo emaranhado, o espaço de acreção, ele tem a liberdade para traçar o percurso que desejar, para “navegar” como quiser pelos fractais; é como se ele se tornasse parte dessa rede, ele literalmente “cai na rede” e integra o corpo do trabalho.
_______ Elementos ativos
Opacidade
A metáfora fundante da filosofia ocidental como metafísica está na oposição entre escuridão e luz, entendida como oposição entre autorrevelação e auto-ocultamento. E Derrida conclui; “toda a história da nossa filosofia é uma fotologia, o nome dado para a história de, ou o tratado sobre, a luz”.[xiii]
A escuridão ainda não foi suficientemente domesticada. Nela, alguns códigos morais e ideológicos não vingam. Podemos dormir e imaginar o que, estando no escuro, nos falta – parte da força dessa escuridão e do nosso espanto. As vozes sem fisionomias, rostos sem gênero ou raça, narrativas pessoais (que hoje são matéria-prima que mantém o fluxo de capital das corporações neoliberais) esvaziam-se, e, assim, o sujeito deixa de ser mais um dispositivo a serviço das instituições de poder. No escuro, a infinidade de perfis desmonta nosso raciocínio ocidental; ver faces, como diria Merleau-Ponty, “não me oferece verdades como a geometria, mas presenças”.[xiv]
Não há como negar a estranheza na escuridão, nela um corpo está entre o repouso e o movimento, um labirinto no vazio em que o pensamento busca desvendar os caminhos que percorreu lentamente em suas errâncias. Olhar o escuro comporta outra gestualidade e, por conseguinte, outra experiência física e intelectual. No completo escuro, o desejo de ver é intenso, mesmo que não haja expectativa de visibilidade; na penumbra, a quantidade de informação é comparativamente menor à da mesma cena iluminada, o que denota a existência de um multiverso que somos incapazes de acessar visualmente; um vazio cheio, portador de ameaçadoras ausências e instabilidades.
É na escuridão que os limites do corpo se perdem e se confundem com os limites do espaço, tornando indiscernível dentro e fora, condição que nos priva parcialmente de apreender suas dimensões físicas e torna invariável direita e esquerda. O escuro que nos preenche e nos desorienta, intimida o totalitarismo da visão e induz o corpo a experimentar toda a potência da (s)kinestesia; somos lançados num espaço insubordinado, sem coordenadas ou percepções simbólicas preconcebidas. Adentrar um espaço desconhecido e em completa escuridão nos mobiliza em nossa inteireza; somos forçados a juntar nossas partes, encontrar nossos limites, sem o auxílio de qualquer imagem. Trata-se de um interesse contínuo pelo que está além do que podemos alcançar.
Planos propositadamente velados não deixam de ser hiatos, frutos do elo perdido que o sujeito do delírio mantém com a imagem do próprio corpo; mas eles também visam romper com as estruturas do “campo da luz como fundação dominante e transcendente da representação e percepção visual”.[xv] Aparente paradoxo, tais planos visam criar um espaço-tempo de fruição que não seja colonizado pelo excesso de estímulo externo, mas que permita ao sujeito abrir-se ao abismo que compreende um campo de virtualidades que se atualizam no próprio momento de encontro com tais fragmentos de imagens. Como na passagem de Ulisses, de Joyce, “Fecha os olhos e vê”, um vazio-cheio que conecta um fora a um dentro, como prolongamento em peles, da imagem, do corpo, e ao mesmo tempo inverte a lógica espetacular do reino do visível e das significações. Espaço-tempo porque na escuridão é preciso ir devagar para não tropeçar nas coisas, é preciso olhar devagar até que a pupila se acostume com a falta de nitidez daquilo que está em vias de aparecer, e esse tempo se contrapõe à alta velocidade com que circulam as imagens no circuito luminoso de produção 24/7.
Quando uma imagem é tomada pela escuridão, como um grande corpo de sombra, seu espaço ganha massas planas ou buracos homogêneos que decompõem possíveis perspectivas, o todo se fragmenta e os detalhes se escondem, o visível se cobre de mistério e ausências, intervalos que carregam crenças potenciais. Essa imagem que nos olha ganha uma espessura subjetiva que enfrenta o nosso olhar e cria um campo opaco marcado pela experiência do encontro. É com a instauração dessa opacidade que é possível alcançar o estado de suspensão, regiões de gravitação onde repousam simultaneamente olhar e fragmentos de corpos que se misturam e se atualizam, instigando uma relação mística entre ver/ser visto. Como na citação de Deleuze, trata-se de “um começo de visível, que ainda não é figura, ainda não é ação”.[xvi]
Essa forma calcada numa potência ou num afeto e que caminha à margem do poder instituinte é capaz de engendrar um real singular que age sobre o real, fragilizando a pulsão fusional da imagem e colocando o sujeito em contato direto com o não visto, sem a mediação do visível, ou seja, tal operação devolve, como que por encantamento, o estado de corpo imaginativo em que a “força da imagem provém do desejo de ver, a do visível da sua capacidade de ocultar, de construir a distância entre o que é dado a ver e o objeto do desejo”.[xvii]
Em seu texto sobre coreografias encenadas no escuro, In the dark, André Lepecki cita Lapoujade e argumenta que a contemporaneidade, pautada pelo capitalismo óptico e pela biopolítica das possibilidades infinitas que “precedem nossa percepção, nossas ações, nossos pensamentos, nossas opiniões, como se o futuro contivesse previamente todos os possíveis”,[xviii] limita o campo de atuação do indivíduo e induz o desejo a emergir sempre de uma zona ou de uma força dada a priori, enquanto a experiência do escuro, inserida nesse mesmo contexto, deve ser entendida como o “meio pelo qual alguma outra coisa foi trazida para a visibilidade, audibilidade e sensação porque alguma coisa foi liberada da fotosfera reificada”.[xix] Com isso, tem-se um outro jeito de pensar/imaginar que não parte do discurso e nem da imagem, mas das forças que lhes deram origem, em que ser e pensamento, corpo e linguagem se fundem como magma. Esse pensamento não deve ser reduzido ao intelecto, como aponta Lepecki: trata-se de um “mundo absolutamente aberto de um pensamento fundindo intuição e duração, o mundo da singularidade sombria em que, dentro de seu horizonte de eventos, se experimenta ‘a fusão do escuro e do pensamento’”.[xx]
Ruído
[…]
< meta sorriso aberto application speakable tabindex=“0” c a11y toogle image talvez seja isso que sou a parte que divide ping back o mundo em clipboards popups display em dois em vários esquartejados em vários fragmentos de // mundo style in position in gois regions desertos especulares effects e vc você de que lado quer estar? shortcuts […][xxi]
O ruído é como o grito, mais alto do que qualquer discurso, um ruído impensado. Ele exacerba a experiência do excesso e lança o corpo num estado de turbulência, em que, desnorteado, ele vai catando e jogando fragmentos do/no mundo e colando uns aos outros, criando zonas de contato, deslocando corpos e fazendo deslocar o pensamento.
Sua heurística de montagem é baseada no fato de haver necessidade de criar zonas de não significação, visto que o corpo esquizo está tão imerso nos excessos (de luz, de estímulos) que a experiência é atormentada pela informação. Descontrolar o corpo e as formas, deixar com que os pedaços se juntem indiscriminadamente, sem lhes atribuir qualquer valor ou significado é uma maneira de responder ao conjunto estruturado da linguagem que perfura e amarra o corpo às regras sociais, como dizem Deleuze e Guattari:
[…] É todo um sistema de agulhagens e sorteios, que formam fenômenos aleatórios parcialmente dependentes, parecidos com uma cadeia de Markoff. Os registros e as transmissões vindos de códigos internos, do meio exterior, de uma região do organismo para outra, cruzam-se pelas vias perpetuamente ramificadas da grande síntese disjuntiva. […] é todo o domínio da inorganização real das sínteses passivas, onde em vão procuraríamos algo a que se pudesse chamar o Significante, e que compõe e decompõe ininterruptamente as cadeias de signo que nunca virão a ser significantes. A única vocação do signo é produzir desejo, e em todos os sentidos.[xxii]
Na forma de fractais, os ruídos permeiam o pensamento e dão ritmo ao tempo; memórias próximas e longínquas, presente real e imaginado, futuro virtual e casuístico, intuições, o tempo trabalha, como diz Didi-Huberman, e o conhecimento se dá por fulgurações interconectadas, pequenos ruídos em rede, os lampejos de novas ideias, que não obedecem a operações de encadeamento lógico ou unidade formal, mas:
Constrói e desmorona, desagrega-se e se metamorfoseia. Desliza, cai e renasce. Enterra-se e ressurge. Decompõe-se, recompõe-se: em outro lugar de outra maneira, em tensões ou em latências, em polaridades ou ambivalências, em tempos musicais ou em contratempos… […] Ritmos a serem ouvidos nos escanções do canto [refiro-me à fala da queixa], ritmos a serem vistos na dança do sintoma: o “trabalho” que Freud destaca parece de fato construir, em seu desenho, a angulação óptica de três “pontos de vista” sucessivos – uma heurística do olhar, portanto –, como se o olho fosse capaz de “penetrar cada vez mais profundamente” na temporalidade do inconsciente.[xxiii]
As frases, como no exemplo do texto inicial ou no texto no início deste segmento, não são pontuadas, mas picotadas por símbolos matemáticos provenientes da linguagem html, e sua ação performativa (como diria Austin) enfatiza as atividades da algo.ritmia maquínica das páginas web (localização das palavras, tamanho, tipo e cor das letras, tamanho das imagens, movimentos). Por sua vez, palavras se repetem, outras viram palavras-valise que desdobram a semântica do texto e mantêm não apenas a aparência caótica das diversas vozes, mas geram ambiguidade entre elas, de modo a borrar os limites entre fatos e fantasias. O que interessa aqui é menos fixar uma informação do que deixá-la atravessar num fluxo à medida que o texto caminha para o fim, ou seja, um aglomerado de palavras cujo sentido é o de ser corpos em movimento que colocam corpos em movimento, propriedade comum aos fluxos informacionais da contemporaneidade: “as palavras surgem ao mesmo tempo que as imagens, as noções surgem ao mesmo tempo que os exemplos (que, em geral, também são excessões)”.[xxiv]
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Descaracterizar o objeto da linguagem e com isso exacerbar a abertura à interpretação. Aumentar a capacidade de aleatoriedade é atividade fundamental do ruído. No exemplo acima, as palavras performam o espaço digital encadeando equações geométricas num texto corrido, e quando se trata do espaço físico a intenção é equivalente. Enquanto com a opacidade a desorientação advém da perda da noção espacial porque as voluminosidades dos corpos e as coisas são obliteradas pela falta de luz, com o ruído ocorre exatamente o contrário, a desorientação atinge sua capacidade máxima com o excesso de luz que toca sempre algo (material ou imaterial – por exemplo, um vaso, uma bicicleta ou uma memória, um pensamento) entre o sujeito e aquilo que o olhar ou o corpo desejam alcançar, são como obstáculos. Por conseguinte, experimenta-se a desordem labiríntica, em que a apreensão de fragmentos (do espaço, do pensamento, de outro corpo) impede a apreensão do todo, rompendo, assim, com a ordem e o cálculo presentes na ideia de horizonte e perspectiva linear desenvolvidas na modernidade, e, como consequência, com o controle e a manipulação.
Desse modo o ruído opera a destituição da capacidade de apreensão totalizante do sujeito. O olhar de sobrevoo do panóptico ou do mapa é conduzido a ceder lugar à experiência do corpo a corpo que traça uma cartografia singular e de afeto, a linha do horizonte é abolida para dar espaço à experiência do chão. A experiência espacial tende a resultar da somatória de perspectivas, ou perspectivas em que o corpo é incapaz de ser o centro das projeções, ou, quando o é, ele também se encontra fragmentado; o espaço não é maior do que ele, o espaço é, com ele, a sua medida. O ambiente produzido não possui ancoradouro ou ponto de referência, apenas fulgurações de elementos heterogêneos deformando novos corpos em espaços utópicos e imaginários.
Dani Spadotto é artista e mestre em Linguagens Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
* Ensaio originalmente publicado na revista Arte & Ensaios n. 38, em julho de 2019. Acesse em https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/25297.
NOTAS
[i] Spadotto, Danielle; Ribeiro, Felipe. Zona Fractal. 2011. Disponível em: <https://issuu.com/gnoise/docs/zona_fractal>. Acessado em [07/07/2018].
[ii] Esse texto de caráter experimental busca enfatizar a velocidade e a forma do pensamento esquizo, por isso a falta de pontuação e hierarquias entre as frases. É como um jorro de palavras que vão aleatoriamente colando na superfície do papel.
[iii] Lepecki, André. Singularities: dance in the age of performance. New York: Routledge, 2016: 59.
[iv] Grosfoguel, Ramón; Castro-Gomez, Santiago. El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores/Universidad Central/Instituto de Estudios Sociales Contempoáneos y Pontificia Universidad Javerina/Instituto Pensar, 2007: 14.
[v] Idem, ibidem: 16.
[vi] O Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) foi constituído no final dos anos 90 por intelectuais latino-americanos, acadêmicos em diversas universidades da América. É considerado por Arthuro Escobar um “programa de investigação” que tem como princípio esgarçar a crítica ao pensamento moderno/colonial. O M/C foi-se estruturando em torno de diversos seminários e congressos, que deram origem a importantes publicações, tais como Grosfoguel, Castro-Gomez, op. cit.
[vii] Didi-Huberman, George. A semelhança informe: ou o gaio saber visual segundo George Bataille. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015: 216.
[viii] Massumi, Brian. Parables for the virtual: movement, affect, sensation. London: Duke University Press, 2002: 127-128.
[ix] Gil, José. Movimento total – o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D’Água, 2001: 61.
[x] Na física existem alguns modelos que explicam os buracos negros, os mais recentes tratam da complementariedade entre o modelo da física clássica, qual seja, a teoria da relatividade e o modelo da mecânica quântica, um modelo das equivalências, ou princípio holográfico, o modelo utilizado nesta dissertação.
Segundo a física clássica, um buraco negro supermassivo gera uma deformação (dobra) no espaço-tempo de tal proporção, que nem mesmo uma partícula de luz (bit de informação) consegue escapar de sua singularidade, uma vez ultrapassado o horizonte de eventos. Quando observamos um buraco negro com telescópio, o que vemos é a tensão, a força que sua singularidade (corpo massivo) exerce sobre o espaço-tempo a sua volta, gerando uma gravitação em que os corpos celestes orbitam desordenadamente e se chocam produzindo energia térmica e radiação até ser definitivamente devorados; portanto, um buraco negro é um sistema termodinâmico. Nesse modelo clássico, o bit de informação é esmagado no interior da singularidade e a energia é liberada em forma de radiação; nesse modelo, o buraco negro irradia até sua evaporação. Esse é o modelo desenvolvido por Stephen Hawking.
No modelo da gravidade quântica, por sua vez, desenvolvido pelo físico Leonard Susskind e atualmente amplamente aceito, o buraco negro exerce a mesma força gravitacional deformante do espaço-tempo, porém pontua que os bits de informação não são perdidos ao adentrar o horizonte de eventos, mas decodificados em sua superfície. É como olhar uma fotografia, que tem na imagem em duas dimensões as informações contidas no espaço no ato da realização da foto. Nesse modelo, o buraco negro possui uma espécie de pele ao longo do horizonte de eventos em que estão contidas todas as informações que caem na órbita do seu horizonte; é aí que a entropia acontece. Essa pele funciona como uma espécie de holograma que contém toda a informação do buraco negro.
Trata-se de um princípio de equivalência, porque, para a física quântica, essa partícula da pele do buraco negro e a partícula no interior do buraco negro são partículas gêmeas, o que quer dizer que quando você observa um buraco negro, o bit na superfície do horizonte de eventos (2D), ela contém as mesmas propriedades do bit de informação na singularidade do buraco negro (3D). Assim, há uma equivalência entre interioridade e exterioridade, não existe representação.
[xi] Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. O antiÉdipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004: 408.
[xii] Didi-Huberman, 2015, op. cit.: 148.
[xiii] Lepecki, op. cit.: 57.
[xiv] Merleau-Ponty, Maurice. O primado da percepção e suas consequências filosóficas. Tradução de Constança Marcondes César. Campinas: Papirus, 1990: 44.
[xv] Lepecki, op. cit.: 55.
[xvi] Deleuze, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005: 241.
[xvii] Mondzain, Marie-José. A imagem pode matar? Lisboa: Vega Editora, 2009: 31.
[xviii] Lepecki, op. cit.: 56.
[xix] Idem, ibidem: 57.
[xx] Idem, ibidem: 64.
[xxi] Spadotto, Danielle. Trecho do texto Argumento citado no presente artigo e componente do projeto Elegia obscena.
[xxii] Deleuze; Guattari, op. cit.: 42.
[xxiii] Didi-Huberman, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013: 280.
[xxiv] Didi-Huberman, 2015, op. cit.: 201.
[xxv] Spadotto, Danielle. Trecho do texto Argumento citado no presente artigo e componente do projeto Elegia obscena.
Dani Spadotto (1978), vive e trabalha entre São Paulo e Rio de Janeiro. É mestre em Linguagens Visuais pelo PPGAV-EBA-UFRJ, arquiteta e urbanista com curso em Urban Housing and Environmental Design pela University of Manitoba. Atualmente suas investigações, teórica e prática, concentram-se nas relações entre o corpo e os dispositivos coreográficos do neoliberalismo, tais como a imagem e a linguagem arquitetônica. A partir do que chama Corpo Fractal [um sistema de criação cujo princípio poético é o modo de ser e o pensamento esquizo] seus trabalhos exploram o delírio e a sensação de controle a fim de manipular o que é visto e dado a ver assim como um buraco negro, ora criando massas de escuridão, ora operando fragmentos e ruídos com o intuito de criar narrativas imaginárias e espaços dissidentes. Os trabalhos se desdobram especialmente nas linguagens foto-video-performances, ações e instalações urbanas.