Entrevista com Jurandy Valença | ARTIFÍCIO

Maíra Endo: Ser um artista-etc é sempre resultado de um instinto de sobrevivência ou também pode ser uma escolha? Como está a vida do artista-etc hoje, no mundo “pandemônico”, como você mesmo diz? 

Jurandy Valença: Acredito que seja mais do que nunca algo instintivo, que nos faz driblar o cotidiano que sequestra horas preciosas do nosso dia-a-dia; mais do que artista, ser acrobata, malabarista. Tentar submergir na areia movediça de todo dia neste país à deriva com um “capitão” sem eira e nem beira. Lembro do Peter Handke, “daquilo de que os outros não sabem sobre mim, disso eu vivo”. Ou sobrevivo.  O artista-etc tem que ser ao mesmo tempo carrasco e vítima, e seguir alternando entre um e outro sem culpa. A falha, o erro é fundamental. Só se chega a si mesmo pela contradição e é impossível agir, atuar sem emoção. Nunca estar totalmente satisfeito consigo mesmo, nunca. Sempre fui um cigano, nômade, um transeunte na vida. De passagem pelas paisagens. Sem contradições não há vida. É essencial dissolver as coisas para que se possa produzir algo novo. Com dizia o Cioran, o artista deve procurar, abrigar uma outra linguagem exterior, além e estranha a sua; não se expressar apenas como “artista”, mas também como um filósofo. O artista hic et nunc, no aqui e agora, tem que ter um modus operandi transdisciplinar, tentacular. Tem que admitir, abrigar e lidar com as incertezas, as contradições e os conflitos. Não estamos em tempos de paz, estamos em guerra. O artista não pode ser morno nunca. Já dizia o Apocalipse 3:16, “porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”.

ME: Quem são os artistas e pensadores que têm te auxiliado a compreender e sobreviver nesses tempos “pandemônicos”? 

JV: São os filósofos, poetas, cientistas, escritores e os místicos; os “bruxos e magos”. Aliás, a palavra “mago” designa alguém que alia o saber ao poder de agir. Sempre lembro de uma frase do William Blake que norteia minha vida há muitos anos: “Aquele que deseja mas não age engendra pestilência”. A pandemônia me obrigou a perceber que as ações e os espaços rituais são essenciais. Que nestes tempos de caos, de amálgamas, a alquimia é um instrumento de poder também. Tunga que o diga, se estivesse vivo. Nos últimos anos têm me acompanhado o Georges Didi-Huberman, Giordano Bruno, Byung-Chul Han, Hilda Hilst, E. M. Cioran, Stéphane Lupasco, Hannah Arendt, Freud, Aby Warburg, Stefano Mancuso, Georges Bataille, Steven Pinker, Franz Kafka, Robert Musil, Ailton Krenak, Orides Fontela, Montaigne, Pascal, Walter Benjamin e Fernando Pessoa e seu desassossego.

ME: Sendo os espaços de arte independentes mais vitais do que as galerias e museus, por que os recursos são tão escassos dentro da cena de arte auto-organizada?

JV: Por falta de organização, planejamento, astúcia, perspicácia, conhecimento e acesso aos editais de fomento à cultura, por procrastinação talvez, parte disso ou um mix de tudo isso. As respostas, quando surgem, só aparecem quando estamos encurralados. Porque a metástase fascista se multiplica e desmonta e corrói as políticas públicas para a cultura. E porque as galerias, as instituições e museus e tal e coisa não querem largar o osso suculento da vaidade e do prestígio e dos incentivos não só públicos, quanto privados. Galeria e museus sobrevivem oxigenados pelo dinheiro de colecionadores, patronos/mecenas das arte$. Eles têm esse privilegio. Mas a fotossíntese é realizada pelos espaços, pelos organismos independentes. Que têm capilaridade maior porque são mais rizomáticos.

ME: Você também é artista-curador. Conte sobre algum artista, que te venha à mente, cuja produção confronta ou provoca, com astúcia, o mercado da arte.

JV: Penso em mais de um, em cinco. O Moisés Patrício, que abre novos caminhos na arte com talento, macumba e ancestralidade; a Giselle Beiguelman que transita do virtual ao real atravessando o arqueológico e fóssil que há na arte; o Bruno Mendonça, que com sua voz e gestos e ações ativam os sentidos e os desvarios necessários à arte; a Virginia de Medeiros que adentra investigativa no seu objeto de pesquisa e nos devolve uma ficção com fricção; e a Vicenta Perrotta, que com sua moda, seu ativismo [trans]gride o status quo na arte e na vida.

ME: Qual a importância dos trabalhadores das artes visuais se organizarem em redes de colaboração na busca por representatividade (criar uma voz coletiva)?

JV: É fundamental essa organização, essa teia/voz coletiva para reforçar a representatividade, seja ela anônima ou não. Lembro de um poema da Hilda Hilst de 1974, escrito em plena ditadura militar, mas que sempre me parece como se fosse de hoje, do aqui e agora:

“de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima

LÍDERES, o povo
Não é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO. POLVO.
UM DIA.

O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.

E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA”.

Hilda Hilst, “Poemas aos Homens do Nosso Tempo”