Maíra Endo: No seu episódio do Artifício, você diz que o artista-etc pode ser também aquele artista que produz seu trabalho sem uma preocupação ou necessidade dele ser reconhecido como arte. Como você vê a relação do artista-etc com os circuitos hegemônicos (institucional e comercial), ditos legitimadores?
Lilian Maus: Há sempre uma tensão quando falamos de grana. Ainda persiste esse tabu sobre remuneração, revelação de preço de obras, falar sobre o que e quem vende, tendo em vista que a arte é um campo em que o valor simbólico institucionalizado justifica qualquer preço possível para um projeto ou objeto, se isso for do interesse de certos agentes da cadeia. Para a grande maioria dos artistas, a obra acontece mesmo é no processo de criação, podendo atravessar outros meios vinculados às atividades criativas como design, educação e etc. Há artistas que optam por tirar seu sustento de outros mecanismos para não comprometer a sua liberdade de criação e seguem circulando em meios institucionais, mas não exclusivamente aí. Vejo isso como uma estratégia que funciona para mim e para muitos amigos artistas.
ME: Qual a importância do educador na formação de público para a arte contemporânea?
LM: Acho fundamental pensarmos a arte contemporânea a partir da mediação com o público. Não apenas de atividades educativas explícitas, como oficinas e palestras, mas também compreendendo que as obras passam por plataformas de documentação e divulgação e isso vai construindo um discurso até chegar a um público mais amplo que não frequenta galerias e museus. Sem essa formação formaremos cada vez mais um gueto que interessa a meia dúzia de pessoas. Sempre lembro da frase do filho de um amigo há mais de 15 anos atrás dizendo, em Porto Alegre, depois de uma perambulação por 3 exposições na mesma noite na cidade: “Pai, mas por que são sempre os mesmos?”. A criança referia-se ao público dos eventos.
ME: No episódio, você afirma que hoje não existe mais um “fora do mercado”, tudo é pensado dentro dele. Você acha que o circuito de arte auto-organizado, ou independente, também sucumbiu de alguma forma aos códigos do mercado da arte? Como?
LM: Entendo que os espaços e projetos auto-organizados ou ditos “independentes” têm um papel fundamental para abrir espaço à renovação do circuito. Eles podem atuar como alavancas propulsoras de mudanças. Mas, nesse movimento, quando legitimados e reconhecidos pelo campo, têm suas lógicas de funcionamento aderidas pelo campo e acabam sendo vistos como uma espécie de prolongamento do próprio sistema. E sim, artistas participantes de projetos auto-organizados reconhecidos, acabam tendo legitimação e isso implica também na valoração de suas obras no mercado. As relações são complexas e as margens trabalham também em um mecanismo que se relaciona com outras pontas do sistema, ainda que indiretamente.
ME: Como você vê o efeito da censura política sobre um sistema da arte contemporânea cujos circuitos hegemônicos já estão rendidos à lógica e aos valores mercadológicos?
LM: A interferência sobre as obras é mais forte em obras comissionadas. Sempre que há intermediários que interferem na cadeia produtiva da obra é preciso negociar interesses e objetivos para chegar a um consenso. Vi isso acontecer em obras como “Inimigos”, de Gil Vicente, que por trazer retratos de representantes políticos traziam um impasse para as leis de incentivo, por exemplo, para citar um trabalho anterior à conjuntura política atual no país. Hoje o que vejo é um desmantelamento de toda a cultura em vários níveis e a censura política que aparece é só a ponta desse iceberg. Com toda a onda mundial conservadora que vivemos em meio a dita “pluralidade” das redes sociais dominadas, cada vez mais, por algoritmos, precisamos ver com mais cautela o que e a quem interessa a censura. Num país com baixa valorização do Ensino Básico e pouca assistência social para população de baixa-renda é compreensível que outras instituições, muitas vezes religiosas, estejam assumindo esse papel de formadoras culturais e difundindo valores e moralidade à grande parcela da população.
ME: Hoje, ao mesmo tempo que testemunhamos o desmonte da cultura pelo governo federal, atravessamos uma pandemia que restringe as atividades artísticas e culturais. Trata-se de um contexto limite para muitos trabalhadores da arte. Como você vê o papel das instituições artísticas e culturais neste contexto?
LM: Estamos vivendo, sem sombra de dúvida, uma época de catástrofes e limites. Talvez por ser, no fundo, uma otimista (embora um tanto quanto cética!), prefiro acreditar que devemos olhar para as crises como possibilidade de reinvenção. É preciso transformar as relações entre artista, público e instituição. Vejo que, na prática, o que tem ajudado a classe, ainda que de modo apenas paliativo, é a lei Aldir Blanc. Ela tem mantido muitos artistas nesse pandemia. No entanto, vejo ainda pouca interlocução entre as grandes instituições enfraquecidas e os artistas fragilizados. Há uma desarticulação na organização do trabalho coletivo imensa no campo de artes visuais, como resultado vem também a desarticulação política. É evidente que a arte e o entretenimento, para o público geral, tem sido essencial para sobreviver à quarentena. No entanto, o quanto conseguimos nos ver enquanto grupo? O quanto ainda conseguimos pensar em questões que atravessam nosso próprio umbigo e repensam essa relação com o público? Sem dúvida, há muito ainda a ser assimilado e transformado. Eu, particularmente, nesta quarentena, passei por um processo bem intenso de transformação do trabalho realizado a partir da colaboração espontânea de pessoas que acreditaram em tornar uma lenda fantasmagórica da lagoa dos Barros, próxima ao meu ateliê em Osório, realidade. Por alguma razão me ajudaram a construir uma imagem onírica sem saber muito bem aonde tudo ia dar. Essa experiência me trouxe esperança. Apesar de tudo, a arte ainda produz sentido, ainda é necessária e podemos fazer isso de uma forma espontânea e agregadora.