Desde o princípio dos anos 2000, é perceptível o crescimento da cena de arte contemporânea independente no Brasil. Neste cenário, dentre outras iniciativas, os espaços de arte independentes – ou autônomos, autogeridos, alternativos, intencionais – são as grandes estrelas. Com base em um mapeamento dos mapeamentos realizados pelos projetos Art.éria (Kamilla Nunes), Rede E.E.I. (Edson Silva/Casa da Ribeira), Circuitos da Desdobra (Fabiana de Moraes), Cadernos de Gestão (Lilian Maus/Subterrânea) e Espaços Independentes (Ateliê 397) – reconhece-se a existência de cerca de 100 destes espaços em atividade em todo o Brasil. Este número, por si só, revela a necessidade e urgência em definir meios não institucionais para a criação e difusão das artes visuais no contexto nacional.
Concomitantemente à expansão da cena independente, em resposta à demanda por profissionalização do setor cultural brasileiro, começaram a surgir cursos universitários em Gestão e Produção Cultural. Hoje, existem dezenas de cursos em todo o Brasil que podem ser conhecidos através da plataforma de mapeamento da formação em organização cultural no Brasil, criada pela Universidade Federal da Bahia (http://www.organizacaocultural.ufba.br). No entanto, estes cursos abordam a gestão e produção desde uma visão macro, considerando o contexto típico de grandes equipamentos e empresas produtoras e gestoras de bens culturais.
Considerando o grande número de espaços independentes espalhados por todo o Brasil e a inaplicabilidade dos conceitos, estratégias e ferramentas oferecidos pela educação formal em suas iniciativas, teve início um processo paralelo de intensificação do debate acerca desta gestão micro. Apesar do receio de engessamento e burocratização dos processos compartilhado por muitos artistas-gestores, como alternativa à educação formal, irromperam no início da década de 2010 muitos projetos cujas propostas eram impulsionar o diálogo e o intercâmbio de conhecimentos acerca da gestão. Na mesma época, foram criados pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, dois editais do ProAc (Programa de Ação Cultural) voltados especialmente para financiar a programação, custos de manutenção e a pesquisa em torno dos espaços independentes de arte paulistas.
Um dos mais presentes pontos de discussão entre artistas-gestores de espaços independentes, diz respeito justamente à nomenclatura utilizada para definir estas iniciativas que, apesar de carregarem muitas diferenças entre si, são geralmente encabeçadas por artistas, acolhem a produção de artistas jovens ou iniciantes (ainda não plenamente consolidados profissionalmente) e posicionam-se como resistentes ao mercado da arte e, principalmente, à estrutura, organização e funcionamento das instituições culturais tradicionais. Em última instância, ser independente significa não ser regido pelas normas institucionais hoje em voga.
Ainda sobre a questão da nomenclatura “independente”, assumo que, da necessidade de autoafirmar-se como espaço (e aqui não me refiro a um espaço físico) onde a arte pode manifestar-se livremente e sem interferências indesejáveis de agentes externos, como o mercado, resolveu-se fazer uso de um exagero que me parece intencional, uma hipérbole. Afinal, relações de dependência são intrínsecas à essência humana e à vida em comunidade e aqui estamos. Entendido desta forma, o termo “independente” reflete a autonomia e liberdade no processo criativo e na geração de conteúdos, não estando diretamente ligado ao modelo de financimento ou micro trama econômica, social, ambiental e cultural onde o espaço está inserido. Ou seja, um espaço independente pode ser visto como aquele que busca estabelecer práticas que tenham a capacidade de manter a arte produzida ali dentro, livre e autônoma. Em outras palavras, a gestão é interdependente até o ultimo fio de cabelo mas a arte não precisa ser. E, a meu ver, esse deve ser nosso foco.
Vale lembrar que o termo “independente”, já conhecido pelo grande público da cultura e vinculado às produções que não são parte do mainstream, também é utilizado por outros meios, como o da música, teatro e cinema. E aqui, como uma provocação extra e isolada da discussão levada a cabo neste texto, cabe citar o artista de múltiplas práticas ou como ele mesmo define, multi-layered, David Blamey:
“It is important that some artists and curators organize their own projects. The art world relies upon independent producers to challenge its power base just as democracy flourished with a measure of dissent. As new ideas and practices are assimilated into the mainstream the prevalent culture of agreement is protected and the power base maintained. Self-initiated projects express an urgency to replace a lack of discourse around certain issues as well as providing a less corralled version of the process of one’s own cultural operations.”
Na cena independente de Berlim, apesar de existir uma infinidade de termos em inglês já utilizados – como artist-run space, independent art space, self-managed art space, alternative art space, non-profit art space – um espaço independente é comumente chamado de “project space”. A tradução livre seria “espaço de projeto”. Entendo que este termo refere-se a um espaço de arte que constrói-se sobre um projeto que, por sua vez, é definido a partir da lacuna percebida pelos artistas envolvidos. Este projeto é a base do espaço sobre a qual desenvolve-se outros projetos, ou seja, é ele quem aponta diretrizes e objetivos, orientando o trabalho desenvolvido dentro dos espaços ao longo dos anos.
Retomando a questão da autonomia, segundo Kant, autonomia é a capacidade da vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação afetiva incoercível. A primeira observação a fazer é que, segundo a visão de Kant, a autonomia é uma capacidade da vontade humana, está ligada às pessoas e não a seres inanimados, como espaços de arte: a arte só pode ser autônoma se as pessoas quiserem que ela seja. Isso significa que um espaço e a arte acolhida serão autônomas, se as pessoas que o fazem e a produzem, o forem. Ainda segundo Kant, um ser autônomo deve obrigatoriamente proteger-se de fatores externos que exerçam influência dominadora: não há necessidade (e a meu ver nem é desejável) de bloquear o fluxo de trocas e a relação com o contexto, apenas manter-se fiel à sua legislação moral ou essência.
Os espaços independentes estão, portanto, inseridos dentro de um contexto, um sistema que envolve todos os agentes com quem é estabelecida, ou pode ser estabelecida, uma relação de troca ou dependência, seja um colaborador, parceiro, prestador de serviço, frequentador ou financiador/patrocinador. No geral, faz parte de sua natureza buscar um diálogo com o que fisicamente o circunda: o bairro, a cidade e seus moradores – vizinhança, amigos, família, artistas, curadores, pesquisadores, críticos, educadores, frequentadores, comércios, serviços, instituições, empresas de porte e instâncias públicas. Uma grande e complexa trama. Ora, um grupo de artistas que pretende organizar e gerir um espaço de produção, pesquisa, difusão e formação, precisa de ajuda, não? Sim, claro que sim!
Muitos espaços independentes tem vida curta: a grande maioria consegue chegar aos 4 ou 5 anos, alguns conseguem completar 7, 8 ou 9 anos e poucos atingem mais de 10 anos de existência. Apesar da sustentabilidade financeira ser desejada por uma parte dos que fecham as portas, existem outros que entendem um espaço de arte independente como naturalmente efêmero, zona temporária ou transitória que orienta sua existência de forma orgânica e espontânea, alimentando-se do entusiasmo das pessoas envolvidas. E aí chegamos a outro ponto de debate: a necessidade destes espaços estabelecerem-se de fato. Afinal, eles surgem apenas para suprir uma necessidade momentânea, uma lacuna num espaço de tempo, ou deveriam buscar formas sustentáveis para sobreviver?
A resposta a esta questão, acredito, não existe. Isso porque a existência dos espaços está diretamente ligada aos desejos e entendimento do gestor, como artista, indivíduo e cidadão. Um espaço geralmente nasce de uma lacuna percebida por um grupo de artistas, seja em suas próprias vidas, seja no âmbito cultural, social e político. Essa lacuna desperta os desejos que serão os motores do espaço: gera o entusiasmo que literalmente os mantém vivos. E faz-se isso coletivamente pelo desejo de troca e trabalho colaborativo mas também porque provavelmente não seria possível, ou muito difícil, fazer individualmente. Os artistas-gestores imprimem no espaço suas características de personalidade, visões de mundo e pesquisas artísticas: os espaços podem ser personificações de seus gestores ou a extensão de seus corpos.
Mas as lacunas não são permanentes e, uma vez preenchidas – a finalização de um processo em curso, o fechamento de um ciclo, a substituição de antigos por novos desejos – podem anular as motivações de uma artista-gestor. Por outro lado, as lacunas são infinitas, assim como a capacidade humana de criação. Além disso, as parcas políticas públicas de cultura dificilmente acompanham a (r)evolução que acontece no dia-a-dia de quem vive a arte. Quando um ciclo se encerra, o artista-gestor precisa ser instigado por uma nova lacuna, revelando novas ambições profissionais, vivenciais e/ou de pesquisa que só poderiam concretizar-se dentro de um espaço independente. E assim sucessivamente, até que o artista-gestor passe a enxergar seu espaço como um projeto de vida: o lugar do impossível, do novo, do transgressor, do crítico. Isso explica a transmutabilidade característica dos espaços independentes de arte.
Acreditando ou não que um espaço desta ordem deve perdurar no tempo para inserir-se nesta trama a contento – alimentando-se de recursos externos para atender a demandas que não podem ser realizadas pelos artistas-gestores – é preciso, em algum momento, desenhar um plano de ação e desenvolver estratégias e ferramentas de gestão. E digo “em algum momento” porque acredito que não vale a pena introduzir este tema logo que o espaço nasce, quando as cabeças dos artistas-gestores estão a todo vapor, no auge criativo, transbordando de sonhos e desejos. A hora certa para fazer um planejamento deve ser definida pelos envolvidos. Aí entra em cena uma ferramenta fundamental que é parte de todo artista-gestor: a intuição.
Dentro de um espaço independente, para produzir e difundir a arte, também é preciso dinheiro, dinheirinho ou dinheirão. Claro que tudo pode ser feito com uma verba mínima – neste caso geralmente dos artistas-gestores e do artista convidado – mas, ao meu ver, ao longo do tempo, investir e não ser remunerado por seu trabalho pode ser um grande problema. Ao princípio, quando a maioria dos projetos acontece desta forma e o entusiasmo salta pelos olhos, as relações de troca estabelecidas com os envolvidos e os vínculos criados, nutrem e recompensam o artista-gestor.
O sentimento de pertencimento também pesa: um artista que está estudando, formando-se ou produzindo seus primeiros trabalhos tem dificuldade em encontrar seu lugar ao sol. Quando passa a existir um espaço físico que acolhe o artista e sua produção, que abre a porta para diálogo com outros e ainda recebe um público com desejo de interação, abre-se caminho para outra necessidade do artista: a de ver seu trabalho legitimado de alguma forma, reconhecido como existente pelos outros. Isso, mais a a sensação de ser parte de uma comunidade, empodera o artista. E todo artista gosta de ter poder sobre sua produção.
Mas com o passar dos anos, quando fica evidente que esse poder é frágil, projetos que dependem unicamente de recursos próprios devem ser meros coadjuvantes, levados a cabo somente quando a captação de recursos não tem sucesso mas existe um desejo incontível de realizar o projeto. A verdade é que não há escapatória: uma hora será preciso dar conta das despesas da vida e dos sonhos que envolvem dinheiro, sejam viagens, estudos ou filhos.
Considerando o espaço independente como projeto de vida de seus artistas-gestores e partindo de um inevitável estado de interdependência que implica num fluxo constante material e imaterial entre o espaço e seu meio, a pergunta que não quer calar é: qual o caminho para alcançar essa sustentabilidade financeira (ou equilíbrio ou estabilidade)? Me parece que tudo resume-se a como o artista-gestor administra esse fluxo material e imaterial, isto é, como o espaço interdepende de agentes ou fatores externos e cria sua cadeia de relações, seu subsistema. Compreender bem o meio (físico, social, cultural, politico, econômico e ambiental), enxergar as possibilidades de troca dentro do network, conhecer as ferramentas de comunicação para gerir este fluxo e mecanismos para controle de “resultados” é, portanto, um primeiro passo bem dado. Pensar e discutir tudo isso não é suficiente: é preciso colocar no papel, na planilha, na tabela, no fluxograma. E essa é a parte divertida! Existe outra bem mais enfadonha que diz respeito às questões jurídicas, financeiras e fiscais. Por fim, é preciso informar-se sobre todo esse universo e dar conta de entender um pouco de tudo. Sim, transformar um espaço independente em projeto de vida não é moleza! Mais do que tudo, é preciso querer e acreditar muito.
Comecemos falando de modelo de financiamento: a estrutura adotada pelo espaço independente para levantar recursos. Precisamos lembrar que a cena independente das artes visuais em vários países da Europa, bem como de algumas cidades dos Estados Unidos, está alguns passos à frente da realidade brasileira. Para se ter uma ideia, os primeiros espaços independentes em Berlim surgiram na década de 70, sendo que o número de espaços em atividade na cidade é maior do que o número de espaços em todo o Brasil. Um olhar sobre os espaços berlinenses que existem há mais de 5 anos, a análise de seus modelos de gestão e de financiamento e a produção de estudos de caso dos que se destacarem, pode ter grande utilidade para a cena brasileira. Vale a pena acessar o http://www.projektraeume-berlin.net/interaktivekarte/ para conhecer o desenvolvimento da cena independente das artes visuais em Berlim ao longo das últimas décadas.
Uma característica de um bom modelo de financiamento – e que determina o grau de “independência” do espaço – é a diversidade de fontes de recursos: depende-se pouco de cada fonte, não sendo construídas relações de extrema dependência com nenhum agente externo. A combinação de várias fontes de recursos na elaboração de um modelo de financiamento, contribui bastante na manutenção do equilíbrio e da estabilidade do subsistema que envolve o espaço independente. Resta então a escolha, depender de que? A existência de um espaço pode depender financeiramente:
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Verba pública (através de políticas públicas de cultura, editais ou Leis de Incentivo Fiscal);
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Patrocínio direto de empresas;
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Doações de pessoas jurídicas ou físicas;
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Financiamento coletivo (crowdfunding);
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Geração de receita (por comércio de produtos ou prestação se serviços);
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Investimento próprio, ou seja, dos artistas-gestores; e/ou
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Investimento dos artistas e outros participantes envolvidos.
A fonte de recurso é um fator determinante do projeto uma vez que sua obtenção envolve, geralmente, condições e exigências delimitantes. No caso de verba pública através de editais, fontes comumente usadas pelos espaços independentes, é preciso estar de acordo com seu escopo, atender a pré-requisitos e oferecer contrapartidas, entendidas geralmente como atividades de formação e medidas para democratização e acessibilidade. A mim me parece estranha a exigência de contrapartidas em projetos de arte já que, a meu ver, atividades de criação, difusão, crítica ou pesquisa tem tanta importância (e são tão carentes de recursos) quanto atividades de formação e não precisam, necessariamente, caminharem sempre juntas. Além disso, uma exposição ou uma pesquisa têm poder de transferir e produzir conhecimento dentro de quem as acessa. Já no caso de verba pública via Leis de Incentivo Fiscal (ou mesmo patrocínios diretos de empresas), preocupa-se em atender à necessidade do patrocinador pelo marketing cultural e ao plano de comunicação da empresa que, frequentemente, já define o tipo de projeto a ser financiado de antemão. E aqui vale enfatizar que não faz sentido algum que empresas determinem alocações de verba pública segundo interesses marketeiros.
Mas apesar de serem muitas as evoluções necessárias com relação às políticas públicas, sejamos otimistas e olhemos com atenção para a programação que os espaços vêm promovendo atualmente. Se, por um lado, a Lei Rouanet tem sofrido alterações e ajustes que vão de encontro às reclamações dos artistas, por outro, vemos os editais multiplicando-se nos últimos anos e a tendência em ampliarem e diversificarem seu escopo – abarcando práticas não comercializáveis e/ou focados em processo e não em produto (como as performances, videoarte, instalações, livros de artista, intervenções, residências, atividades de formação, publicação de conteúdos em formatos diversos).
Dentro deste cenário, os artistas-gestores tem se mostrado cada vez mais sagazes no momento de captar recursos, adequando suas ideias às exigências, e também ao realizar o projeto, inclusive no que toca à flexibilização de cronograma e à produção de relatórios de prestação de contas contundentes. E, tratando-se de verba pública, seja no caso de editais quanto de Leis de Incentivo Fiscal, não há como abrir mão da prestação de contas: executar e gastar o prometido, dentro de um período de tempo pré-estabelecido. Ao escrever um projeto, o artista-curador-gestor, precisa estar atento à forma como define sua estrutura, ou seja, ela precisa ser a mais aberta possível para que, ao realiza-lo, consiga garantir a flexibilidade que a produção precisa, a liberdade do crítico, pesquisador, educador, curador e artista para desenvolverem seus projetos e, consequentemente, a autonomia da arte ali produzida. Em última instância, podemos afirmar que o ato de criação do artista-curador-gestor é de fato um tanto cerceado mas o do artista convidado não precisa ser.
Com relação às outras fontes de recursos, o financiamento coletivo de projetos de artes visuais, infelizmente não ganhou força no Brasil. São raros os projetos que conseguem ser viabilizados desta forma. As doações são difíceis de obter, ainda muito ligadas à contatos pessoais do artista-gestor. A geração de receita ainda é uma fonte pouco explorada no Brasil mas existem espaços no exterior que encontraram neste caminho a resolução para sair de um estado constante de instabilidade financeira. A meu ver, a geração de receita, além de ser um fator estabilizante, uma carta na manga, pode ser definitiva no que diz respeito à garantir a autonomia da arte produzida dentro de um espaço independente. Por fim, duas fontes de recursos infelizmente bastante utilizadas pelos artistas-gestores atualmente: o próprio bolso e os bolsos dos artistas e convidados. Dispensa comentários.
E quando falamos de dinheiro, um ponto a ser considerado é que um espaço que tem bem definida e planejada a gestão dos recursos e, logo, seu modo de operar, tem mais facilidade para isolar, o processo de criação e de troca entre os envolvidos, de questões ligadas à gestão de recursos – como por exemplo, a remuneração dos agentes (sejam gestores, curadores, artistas, críticos, dentre outros) e investimentos necessários para realização de um projeto. Quando existe clareza dos recursos disponíveis desde o princípio, o processo de criação segue sem interrupções e recomeços desnecessários.
Considerando as múltiplas visões que um artista-gestor pode ter com relação ao espaço que encabeça, para aqueles que desejam que seus espaços sejam projetos de vida, é preciso seguir buscando por novas fórmulas e largar antigos vícios. Aliás, acredito que fórmulas e vícios devem ser renovados de forma contínua. Um caminho bastante coerente é a abordagem dos espaços independentes como a fusão entre projetos de arte e pequenos negócios que, apesar de não terem a geração de lucro como principal objetivo, têm vocação para gerarem receita e estabelecerem-se como renovadas instituições culturais a partir de modelos de financiamento funcionais que cuidem da manutenção de sua existência. O artista-gestor precisa, portanto, de um plano de negócios que inclua o planejamento financeiro, a identificação de estratégias e o uso de ferramentas de gestão, envolvendo a comercialização de produtos e/ou a prestação de serviços. E aqui, posso estar falando de comercializar produtos de arte aplicada ou inserida, mas não de comércio de obras de arte. Na prática, é preciso combinar os desejos do artista-gestor, as oportunidades identificadas no meio (como políticas públicas de cultura, demandas por parte do público, por exemplo) e um bom planejamento: espaços independentes como organismos mistos, divididos entre interesses e recursos públicos e privados.
Um exemplo de antigo vício é não valorização do registro, esteja ele ligado à gestão financeira, à produção, ao público frequentador ou aos conteúdos produzidos e difundidos. O registro é importante sempre e, estando ligado à todas as atividades do espaço, pode materializar-se na forma de documentos, como relatórios, planilhas, fotografias ou vídeos. São estes documentos que formam o acervo técnico do espaço, contam sua história detalhada e são indispensáveis ao artista-gestor que pretende trabalhar o desenho organizacional, e consequentemente seu modo de operar, de forma contínua. Isso permite que seja construída uma base sobre a qual tudo se constrói dentro de um espaço independente. É dizer: existe uma forma de trabalhar que é comum a qualquer projeto desenvolvido. Ou ainda, uma linha de raciocínio pré-existente que, a partir de um certo ponto, segue para lados distintos, dependendo do projeto em questão. Pode não parecer mas a construção desta base, respeitando todos os processos que são levados a cabo internamente, tem efeito libertador sobre a gestão do espaço na medida que poupa energias e recursos.
O Agora, em Berlim, descobriu uma nova fórmula! Tratemos como um mini estudo de caso (http://agoracollective.org). O Agora é um coletivo que recebe pessoas e projetos colaborativos baseado em uma filosofia que reflete os valores de sua comunidade/membros: diversidade, auto-organização e laços sociais. Definem-se portanto de forma ampla, envolvendo as expertises de seus 15 membros e destacando a importância de imprimirem suas visões de mundo dentro do espaço. Tem 4 frentes de atuação: espaços de trabalho, arte, comida e o Kindl, um novo “project space” experimental para aprendizado colaborativo. Os espaços de trabalho ocupam 5 andares do edifício e incluem uma sala de trabalhos práticos, sala silenciosa, sala multifuncional, café e jardim. Os horários são flexíveis e existe uma variedade de passes que adequam-se às necessidades dos usuários. O Agora também é uma plataforma para a apresentação, desenvolvimento e promoção das artes, especialmente interessada em investigar práticas sociais e artísticas através de métodos experimentais de trabalho em grupo e processos interdisciplinares. Pretende atuar como catalizadora no trabalho das multidisciplinas existentes no local, ligando os recursos intelectuais dos campos da arte, empreendedorismo, ciência, filosofia, tecnologia e alimentação. Realizam o Festival Agora Collects, o programa de performance Foreplay e o programa de residências AFFECT. O coletivo também organiza discussões, oficinas e intervenções artísticas. Como plataforma que reúne iniciativas engajadas em explorar abordagens da comida, noções de colaboração, auto-organização e sustentabilidade são colocadas em prática na cozinha. Chefs de conceitos inovadores são selecionados para assumirem o restaurante do Agora usando o tempo, espaço e infra-estrutura disponíveis para experimentarem suas ideias em um contexto gastronômico real. Os chefs residentes apresentam refeições criativas aos frequentadores pelo período de 3 meses. O coletivo também organiza e conceitualiza eventos gastronômicos, pop ups e oficinas sobre comida. Apesar de gerar receita, o Agora também depende de patrocinadores e parceiros.
É nos espaços independentes, organismos mistos divididos entre interesses e recursos públicos e privados, que os artistas-gestores podem realizar suas pesquisas e propostas artísticas com autonomia, e também tirar dali seu sustento e de suas famílias sem criarem pontes com o perverso mercado da arte e seus braços manipuladores. Estes organismos, que têm uma vocação para perdurar e renovar-se ao longo dos anos, que protegem com unhas e dentes o processo de criação, que definem seu escopo e programação de forma pessoal mas também considerando interesses públicos, que são estáveis financeiramente e ainda detentores de um público fiel e engajado, não poderiam ser as instituições culturais do futuro, um contraponto às atuais e tão criticadas? Por que, além de falarmos em evitar a institucionalização dos espaços independentes, não pensamos em como seu modo de operar e escopo podem influenciar as instituições? Indo um pouco além, por que os espaços independentes de hoje não podem ser as instituições do futuro? Não seria possível desenharmos um novo caminho do meio, onde estratégias e ferramentas de gestão e organização de uma instituição (sem incluir a estrutura hierarquizada e os processos “burrocráticos”, obviamente) são absorvidas pelos espaços independentes, mantendo suas características primordiais como porte, autonomia sobre processos internos, flexibilidade e adaptabilidade?
As instituições culturais historicamente detêm o poder de legitimar o que é o legado cultural e artístico, ou seja, o que merece ser preservado, pesquisado e conhecido por todos. Dotadas de tanto poder, tem a responsabilidade de olhar para um todo sempre no risco iminente de perderem algo de vista. E sempre perdem. Se a instituição serve a toda a sociedade, sendo o órgão legitimador da arte, por que muitas vezes tornam-se elitistas e/ou reféns de um mercado excessivamente empoderado? Por que tem o hábito de olharem mais para trás do que para a frente? São poucas as que abrem-se a novas narrativas e colaborações e firmam-se como espaços para reflexão e mudança. Mas não precisa ser assim, as instituições não são organismos imutáveis diante de novas realidades que vão se sobrepondo. As instituições culturais brasileiras atualmente, como reflexo das políticas públicas de cultura, além de não estarem a par das revoluções no mundo da arte e não darem conta de práticas não comercializáveis e/ou focados em processo (como as performances, videoarte, instalações, intervenções, residências, atividades de formação, publicação de conteúdos), também não acompanham a demanda dos artistas jovens ou iniciantes por espaços de produção, pesquisa e difusão. Isso sem falar que não problematizam os efeitos da institucionalização e da intensificada mercantilização sobre a arte.
É nos espaços independentes que tudo (ou quase tudo) pode acontecer. Se o trabalho dentro deles buscar também o fortalecimento e valorização da gestão, será possível subir um degrau: os espaços independentes de hoje podem ser as instituições culturais de amanhã e, de sua origem, podem trazer características que renovarão não só seu modo de funcionamento mas também seu papel. As novas instituições não necessariamente substituiriam as atuais mas se somariam a elas, ampliando seu escopo e suas funções e também apresentando novas formas de estrutura e organização. Um artista-gestor e seu espaço já são agentes de reflexão importantes mas podem também ser agentes de mudança. É necessário assumir essa responsabilidade para que seja possível auxiliar, com maior eficiência, na moldagem da sociedade do nosso futuro.
Minha pesquisa em gestão cultural foi iniciada em 2007 com o trabalho de conclusão para o curso de Administração de Empresas, “Panorama crítico do setor: os caminhos da gestão cultural no Brasil”. Entre 2008 e 2009, cursei uma especialização em Gestão Cultural e, nos anos seguintes, tive a oportunidade de participar de uma série de projetos voltados para a gestão de espaços independentes de arte. Desde 2004, então aluna do curso de Artes Visuais, sou integrante do Ateliê Aberto, espaço independente de arte contemporânea localizado em Campinas/SP e que em 2015 completou 18 anos. Em 2009, tornei-me sócia e passei a coordenar o espaço junto à Samantha Moreira, criando e produzindo projetos. Fiz de meu lugar de trabalho um laboratório permanente de pesquisa em gestão de espaços independentes, tendo como meta principal o estabelecimento de um modelo sustentável financeiramente. Atualmente, estou a frente da SOLar, pequeno organismo que busca, neste primeiro momento, realizar projetos de pesquisa em gestão cultural que proporcionem o trabalho colaborativo, a criação de redes e a ampliação da representatividade da cena independente de arte. Seu primeiro projeto, a SINAPSE (sinapse.art.br), foi premiado no edital de publicações do ProAc e está em fase de realização. O segundo projeto, CÓRTEX_base de dados dos meios independentes para a arte contemporânea, foi premiado pelo Programa Rede Nacional da Funarte em 2015 e deve ser implementado em 2016.
Alguns links para pesquisa:
http://www.projektraeume-berlin.net/interaktivekarte/
http://www.gestionautonomadearte.net
http://www.artquest.org.uk/articles/view/artist-led-spaces
http://www.artquest.org.uk/articles/view/global-networks
http://www.jaca.center/wpcontent/uploads/2015/06/INDIE_GESTAO_FIN_OK.pdf
http://subterranea.art.br/eai/
http://www.casadaribeira.com.br/projetos/rede-e-e-i/5/
http://issuu.com/atelie397/docs/espacos_independentes
http://atelie397.com/loja/espacos-independentes-pdf/
http://editoracircuito.com.br/website/wp-content/uploads/2013/11/espacos-autonomos-web-11.pdf
http://www.newmuseum.org/artspaces/map
http://atelie397.com/o-artista-gestor-e-a-potencia-independente/