O tema escolhido para esta reflexão se pauta nas relações que podem ser estabelecidas entre os museus e o turismo cultural. Entendendo o turismo cultural como um dos caminhos para uma das possíveis estratégias de gestão (retorno financeiro, ampliação de público, aquisição de novos públicos, desenvolvimento e formação de profissionais, parcerias público-privadas, etc.) e de difusão de coleções e acervos, busquei analisar como essa relação afeta a identidade dos museus e os processos da cadeia museológica com foco na gestão. Este ensaio é destinado à todos(as): gestores(as) culturais, agentes do setor público, privado ou do 3o setor, museólogos (as), profissionais da arte e da cultura, pesquisadores(as) e demais pessoas interessadas.
Marina Pinheiro
Maio de 2016
Os museus e o turismo cultural
Identidade em uma transformação contínua: sobre uma breve definição de museu
Na tentativa de compreender um contexto específico é didático considerar algumas definições: de acordo com o ICOM, “um museu é uma instituição não lucrativa, permanente, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda, comunica e expõe, para fins de estudo, educação e deleite, os testemunhos materiais das pessoas e de seus ambientes”1. À partir dessa definição é possível compreender o papel essencial que os museus exercem em inúmeros aspectos, sejam eles históricos, pedagógicos, sociológicos, científicos, entre outros. Essa definição também enumera as etapas da cadeia museológica.
Contudo, o museu sofreu inúmeras transformações que levaram ao surgimento de novos processos, novas ações, novas formas de aplicação para cada uma das etapas da cadeia museológica. Essas “mudanças” que permeiam as análises históricas e sociais, dos processos vividos pela homem até aqui, aparecem como fator decisivo, para o entendimento das esferas de complexidade nas quais a museologia está inserida. Segundo Pierre Nora, é essa “áurea” da mudança que provoca nesse universo de escolhas museológicas, expográficas e de pesquisa um tipo de “revolução no relacionamento tradicional com o passado. Essa mudança tem adotado múltiplas e diferentes formas, dependendo de cada caso individual: uma crítica das versões oficiais da História; a recuperação dos traços de um passado que foi obliterado ou confiscado; o culto às raízes”2. Aqui é possível apontar questões comum aos campos museológicos que serão trabalhados, sendo: como o resultado dessa sensação de pertencimento, consciência coletiva e autoconsciência, influência na exploração de acervos, arquivos e coleções? Como os conflitos ou a busca por renovação tornam-se decisivos na estruturação e na identidade de museus ao redor do mundo?
Independente do termo escolhido, Heritage ou patrimoine, independente das especificidades de cada campo, independente do objeto ou do fato museal, parece bastante importante analisar cada universo à partir de uma ótica que trate da mudança no aspecto historiográfico, evolutivo e sobretudo sociológico, acerca da profunda transformação do lugar dos indivíduos nas sociedades. Tal aspecto pode ser aplicado aos campos estudados até aqui, inclusive para a arte, cujos fatores filosóficos são essenciais para compreender os processos de transformação de seus museus ao longo de nossa história. Esse aspecto da análise pode ser visto nas transformações sofridas ao longo dos séculos por muitas das instituições museais, sobretudo as de arte moderna e contemporânea.
À partir desse cenário de transformação contínua, tornou-se essencial distinguir cada tipo de instituição, cada tipo de museu e suas especificidades. Segundo Iro Maroevic (1998), essa necessidade de distinção “nasce de um processo de profissionalização e especialização no interior do campo museológico tendo como base a conservação e a salvaguarda do patrimônio”3. Para o autor, tais transformações produzirão três tipos de instituições: as tradicionais que adotarão novas tarefas afim de reforçar sua legitimidade; as tradicionais que se dissolverão em várias instituições especializadas (mais ou menos em grande escala); e as novas instituições que serão criadas “com base em uma nova interpretação das mesma categoria estrutural, que se sustentava por trás da instituição tradicional”4. O autor afirma ainda que:
“Aujourd’hui, l’institution muséale contient en elle-même les nombreuses strates du concept de musée. Le musée ne peut échapper à son propre nom. Temple des muses, il inclut toute spiritualité de l’art et de la connaissance, autant que sa mission de médium éducatif par lequel il pénètre dans la vie de tout présent nouveau. D’autre part, le musée est un trésor de richesses sélectionnées et collectées qui, en plus d’avoir une grande valeur matérielle, stimule les besoins spirituels des êtres humains et leur permet d’avoir des contacts directs avec le monde du passé et les secrets que dissimule le monde. De plus, le musée est un cadre spatial dans lequel tout cela se passe et où l’organisme composé du personnel affecté aux tâches du musées s’assure qu’il fonctionne”5.
No caso dos museus de arte moderna e contemporânea, vê-se a passagem de uma narrativa horizontalizada (reflexo da evolução das formas artísticas e da autonomia do campo artístico) para o fim das narrativas e à efemeridade propostas pela arte contemporânea. A especificidade da arte nesse processo de criação de novas perspectivas surgidas à partir de uma experiência pessoal é, segundo Brian O’DOHERTY, o que faz da arte um campo que se apresenta de forma desordenada nesse processo:
“(…) sua história, compreendida através do tempo, confunde-se com o quadro diante de nossos olhos, uma testemunha pronta para mudar o depoimento ao mínimo sinal de provocação. A história e o olho travam uma contenda renhida no centro dessa “constante” a que chamamos tradição”6.
É importante ressaltar ainda que o desenvolvimento tecnológico também dita o ritmo das transformações sofridas pelos museus. Segundo Bruno Jacomy:
“A questão levantada sobre a importância dos museus é associada com problemas mais fundamentais da sociedade, já que as consequências do desenvolvimento tecnológico e científico têm implicações de longo prazo no futuro do planeta, na sociedade, no clima, etc. O museu torna-se então um recurso cultural essencial da sociedade tendo o cidadão o direito de formar sua própria opinião sobre as grandes questões da atualidade”7.
A nova ordem dos museus
Cada vez mais as sociedades contemporâneas demandam ser estimuladas por novos museus, multiformes. Conforme citado anteriormente, as particularidades das problemáticas socioculturais transformam o sentido dos museus. Segundo Dominique Poulot “a super oferta comunicacional, apoiada nas novas tecnologias, acompanha, em alguns casos, uma banalização do que está em jogo e da importância do objetivo a que se propõe cada instituição. Paralelamente, grandes instituições temáticas aparecem, encarregadas de expor conhecimentos gerais, mas que ilustram com frequência um outro aspecto do pós-modernismo, a transformação do discurso erudito e disciplinar no que Clifford Geertz (1986) chamou de um gênero incerto”8.
Atualmente, é possível constatar um crescimento significativo de instituições com esse perfil. Tornou-se difícil precisar a quantidade de museus, tanto segundo cada país, como mundialmente. De acordo com Poulot, foram calculados entre 25 000 e 30 000 instituições oficialmente reconhecidas. Na França, por exemplo, o número de museus administrados pela DMF – Direction de Musées de France e pelos governos regionais é de aproximadamente 1200 museus. Alguns especialistas afirmam que eles seriam por volta de 2000 estabelecimentos, enquanto alguns guias turísticos citam entre 5000 e 6000 museus. Contudo, tudo depende dos critérios escolhidos para definir essas instituições. Algumas que podem ter uma vocação mais voltada ao “mercado” são classificadas como museu em razão da ampliação constante das definições, alimentando assim, incertezas estatísticas.
Tal crescimento é recente e coerente com a realidade de países desenvolvidos, já que nesses países as instituições devem fornecer recursos educativos e contribuir social e economicamente. Ainda segundo Dominique Poulot:
“Cette croissance n’est pas uniforme pour toutes les catégories de musées : notable pour les musées d’histoire, de société, de civilisation, pour les musées techniques et spécialisés, spectaculaire pour les musées américains d’enfants, elle a été moindre dans le secteur de Beaux-Arts, mis à part le cas des musées d’art moderne et des centres d’art contemporain, comme illustre l’exemple de l’Allemagne ou celui des États-Unis. L’expansion recouvre également une diversité de statuts considérable, alimentée par des créations privées ou indépendantes, au moins hors des pays à tradition muséale publique (en France, dans 60 % des cas, la tutelle des musées est publique, qu’il s’agisse de l’État ou des collectivités territoriales)”9.
O autor afirma também que essa nova geração de museus está de certa forma “atrasada” no que diz respeito às estratégias identitárias associadas às fundações, bem como com relação às políticas públicas nacionais (França): os museus monográficos, por exemplo, adquirem um formato de “museu internacional”, os museus da indústria local mantém um selo “cultural studies”. Contudo, esse sintoma é mais significativo quando se fala na criação de filiais como o Guggenheim de Bilbao, o Louvre Lenz, o Centre Pompidou Metz, a Tate Liverpool, posto que essas instituições misturam especulações financeiras, políticas, urbanas e globais
No que diz respeito à espetacularização da arquitetura de museus, as relações econômicas, urbanísticas e políticas que permeiam a construção de edifícios programados para abrigar coleções ou espaços expositivos, o mundo museológico hoje possui exemplos frutíferos para esse debate. Conforme citado, o Guggenheim Museum de Bilbao é um exemplo clássico. Concebido por Frank Gehry (1991/1997), esse museu desencadeou um processo em escala global de construção de grandes espaços culturais/ museus em áreas portuárias deprimidas demográfica e urbanisticamente e com certa fragilidade de investimentos. A construção do museu à partir de um projeto arquitetônico espetacular, deixou transparecer que apesar da monumentalidade do edifício não havia preocupação em exteriorizar questões, debates, sobre o papel dessa instituição, sua linha curatorial, expográfica, e muito menos o papel que ela exerceria no cenário artístico e cultural da região. Têm-se aí o fortalecimento da ideia de museu como um lugar de passagem, um lugar para abrigar exposições temporárias e não uma instituição que poderia formar coleções, investir na conservação, na pesquisa e no patrimônio como um museu de arte no sentido mais amplo.
Esses novos edifícios representam a desconstrução das formas da arquitetura internacional do pós-guerra que, sensória e sedutora, redefini a paisagem da cidade, que passa a existir na nova memória a partir da construção desses edifícios. Esses projetos são também associados a um tipo de “repaginação” de áreas de fronteiras, trazendo investimentos e visibilidade, mas sobretudo, provocando a cidade a se reorganizar mentalmente. É importante ressaltar que muitos desses edifícios possuem um custo elevado de manutenção. Esses projetos têm em comum alguns pontos:
• refletem o museu da atualidade: o que possui pouca coerência com a cadeia museológica;
• tem como forte objetivo a necessidade de “rápido” desenvolvimento econômico local;
• são museus sem acervo, o que pode representar um tipo de “ruptura social”, posto que são impossibilitados de investir na memória, nos patrimônios material e imaterial;
• muitos possuem uma agenda curatorial e conceitual problemática o que interfere na identidade da instituição e na manutenção de programas de longo prazo.
Segundo François Mairesse e André Désvallés:
“le monde muséal a considérablement évolué ces dernières années ; des notions telles que le développement touristique et économique, ou la performance, ont largement pris le pas sur les préoccupations sociales, voire sur la conservation du patrimoine. Dans une logique mondialisée, quelques grands « musées superstars », à l’instar du musée Guggenheim de Bilbao, imposent largement leur logique de fonctionnement, au détriment de nombre d’établissements de taille plus modeste. Le rôle particulier de l’État, en France, contribue au développement d’une infrastructure muséale exceptionnelle, partiellement pour maintenir sa position dominante au niveau des flux de migration touristique. Mais ce renouveau patrimonial induit également un changement de culture sur le plan organisationnel. Des personnels purement administratifs remplacent les personnels scientifiques à la tête des établissements. L’autorité publique et l’intérêt économique encourent le risque de prendre le dessus sur l’intérêt scientifique et patrimonial”10.
O turismo cultural nos museus
As atividades turísticas ligadas aos museus mudaram muito nos últimos 20 anos. Essa transformação é resultado de uma evolução da paisagem museal: os novos museus, de temáticas variadas, souberem provocar no público um interesse real pelas suas coleções e pelas novas museografias. Segundo Christian Assante, os museus “se abriram ao turismo dando a esse setor um novo impulso que se baseia na qualidade das ofertas culturais desses equipamentos: novas propostas de turismo cultural, novas formas de explicar ou interpretar as coleções e os temas”11.
Compartilhando da mesma ideia que outros pesquisadores, Assante afirma a importância dessa nova imagem apresentada pelos museus, com uma qualidade superior na oferta dos seus serviços: novas maneiras de conceber a recepção e mediação do público, conforto da visita, criação de espaços consagrados ao descanso e às lojas. Nas palavras do autor: “na realidade os museus e equipamentos culturais em geral estão descobrindo que os públicos são compostos de visitantes heterogêneos os quais podemos considerar também como clientes a satisfazer”12. Segundo o autor, a pesquisa de qualidade dos serviços de recepção constituíram um desafio para o desenvolvimento turístico, posto que em muitos casos isso era uma de suas principais fraquezas. Tal referencial de qualidade de acolhida e recepção necessita de um acompanhamento constante de sua execução assim como de pesquisas da satisfação dos visitantes. É importante ainda considerar as visitas de grupos, cuja demanda vem em grande parte do setor turístico.
Hoje, tornou-se indispensável que cada museu crie uma conexão de seus meios e ofertas com as do setor turístico institucional, orgãos públicos como secretarias e comitês de turismo locais e regionais. Também se tornou importante se conectar com redes internacionais e econômicas como as câmaras e associações de comércio e indústria. Uma das possibilidades dentro dessa realidade, segundo Assante, seria de buscar através de uma empresa local uma valorização suplementar da imagem da instituição associando-a a da empresa como um “endosso de marketing”.
O autor elabora uma lista de recomendações para ajudar os museus a conquistar os públicos turísticos e a colaborar com o desenvolvimento turístico e consequentemente econômico da cidade ou região. Uma boa qualidade de recepção e acolhida, serviços de qualidade oferecidos ao público, o conforto da visita, a qualidade da informação e dos seus meios de difusão, a unificação dos horários de funcionamento, a diversificação das visitas, a concepção de produtos turísticos tradicionais (como restaurantes, hotéis e transporte que também são componentes culturais do setor turístico) e a aproximação com a cidade ou região através dos serviços que ela oferece, são as maneiras, segundo o autor, de aumentar a frequentação turística dos museus. Segundo Assante, “a melhora na qualidade da recepção nos museus se faz uma conquista se os visitantes-turistas têm um sentimento positivo de sua experiência e se tornam consequentemente suscetíveis a se transformar, assim como os habitantes locais, embaixadores do país quando retornam aos seus locais de origem13.
Além das ações apresentadas por Assante, uma das principais estratégias de gestão para o segmento do turismo cultural (no qual os museus estão inseridos) assim como em todos os setores conectados ao sistema econômico vigente, é o investimento em marketing. O principal objetivo de uma iniciativa de marketing no universo cultural é de proporcionar uma visão mais eficaz das potencialidades e de desenvolvimento a todos os atores (seja do segmento cultural, seja do segmento turístico local) que se vêem confrontados aos mesmos problemas estratégicos. Essa abertura tem por objetivo preconizar pistas e reflexões sobre a gestão através da elaboração de uma gama de ofertas conectadas às demandas. Trata-se, mais precisamente, de conhecer melhor os mercados existentes, as diferentes ofertas presentes no mercado, os atores (fornecedores, produtores, distribuidores, etc.), suas estratégias e os segmentos de público14, suas motivações e expectativas. Trata-se também de compreender melhor os mercados emergentes ou potenciais. É igualmente importante estimar o peso econômico de cada um dos mercados, país por país, ou à partir de grandes segmentos de públicos identificáveis, apontando o potencial que podem representar os diferentes mercados e imaginando os registros de comunicação, marketing e comercialização a serem colocados em prática para seduzí-los. Tais ações são coerentes tanto com uma realidade crítica, onde a dificuldade para conquista de novos públicos e aumento do público habitual é evidente, como em uma condição de bons resultados. Diante de números satisfatórios de frequentação turística é preciso considerar ainda diferentes cenários e variáveis muito características da economia do setor de turismo, para que isso aconteça é preciso investir mais amplamente na participação direta de profissionais especializados.
No caso dos museus, esse cenário não é diferente, mas devido à sua especificidade, ele apresenta ainda outras variáveis significativas. Segundo Dominique Poulot, “além das exigências quanto ao sucesso das exposições, medida através dos números de frequentação e de recursos coletados, outras demandas se impõem sobre os museus em termos de contribuição ao desenvolvimento regional (em matéria de políticas públicas de cultura), sobretudo no que diz respeito à expansão do turismo, a redução de desigualdades culturais e de integração social”15. Partindo dessas condições algumas medidas diretas baseadas na análise e no trabalho de especialistas do setor podem ser tomadas. No caso do turismo, pode-se citar o exemplo de algumas das maiores instituições parisienses que criaram delegações ou direções de desenvolvimento turístico dentro dos museus. Essa iniciativa recente foi implantada no Musée du Louvre, no Musée d’Orsay, no Musée du Quai Branly e no Centre Pompidou, onde foi criada em 2010. Com o objetivo de trabalhar diretamente esse segmento, essas delegações criam parcerias com orgãos locais, regionais e internacionais, desenvolvem iniciativas específicas para o público turístico, criam ofertas associadas a produtos turísticos tradicionais da cidade e buscam divulgar os museus em espaços não convencionais como feiras, guias impressos, congressos e eventos do mercado de turismo. Essas delegações também coordenam pesquisas de público e satisfação e treinam novos tipos de mediadores, capacitados para atender demandas bastante heterogêneas.
CONCLUSÃO
O turismo cultural, seus desafios e riscos enquanto estratégia na gestão dos museus
À partir dessa breve análise foi possível apresentar através de uma ótica “francesa” como se desenvolve o turismo cultural nos museus, que se tornam pouco a pouco um dos grandes colaboradores do desenvolvimento do turismo cultural. A instituição museal se torna por excelência uma instância que valida um tipo de identidade efêmera, criada para difundir parte da cultura e dos hábitos locais. Segundo Elsa Olu “cada localidade determinará o segmento cultural mais coerente com relação aos contextos sociais, políticos, econômicos, culturais, geográficos e administrativos, e criará um museu que saberá atrair e difundir. O museu se torna assim, uma fábrica da imagem do país, da região ou da cidade onde está situado”16.
Nessa mutação museal, o grande desafio atual é de encontrar maneiras de financiar os produtos, seja do ‘museu/produto cultural’, seja do ‘museu/equipamento urbano’. As novas fontes de financiamento levam os museus a desenvolver novos públicos, mas também a participação de novos atores, profissionais de gestão, produtores, que inspirarão uma nova lógica de management e gestão museológica. Contudo, essa lógica faz aparecer um tipo de disputa entre o financiamento e a conservação. Nesse duelo, a questão da transmissão ou da troca cultural – inerente ao turismo – conta pouco. Segundo Lucie Morisset et Luc Noppen “tudo acontece como se tivéssemos instrumentalizado mais o turismo que o museu, dessacralizando num mesmo ato todas as relações que um e outro mantém com a cultura, aniquilando suas relações conjuntas17. Os autores são pessimistas ao afirmar que “a fertilização cruzada de novos museus e de novos processos turísticos não permite considerar uma projeção de um resultado singular sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento cultural local. (…) Em outras palavras, se o museu se coloca neste momento como sujeito da transformação dos Estados para a economia turística pela envergadura e meios de que dispõe para isso, nada garante que ele mantenha seu papel de ator cultural, seja no que diz respeito à conservação, seja como vitrine”18.
Diante desses riscos e desafios, levando em conta a grande variabilidade de contextos e práticas e da evolução rápida das sociedades, é possível afirmar que “a grande adaptabilidade que conduz a economia a fazer do museu um dispositivo do turismo cultural e fator decisivo de uma economia turística em expansão favorecerá certamente seu reposicionamento no tempo”19.
A longo prazo, alguns obstáculos são previsíveis. Certamente, é pouco provável que um museu cuja apresentação tem prioridade sobre o conteúdo seja eficaz em termos de fidelização de públicos e de perenização das visitas: “o argumento da obra arquitetônica pode ser vítima da moda, correndo o perigo da visita única”20. Contudo, não fica claro até onde este fator, que é considerado um risco segundo as instituições, seja considerado como tal do ponto de vista econômico-turístico: esta evolução só configuraria um problema real no caso de procedimentos a longo prazo, o que não é necessariamente um problema para a economia turística, mas poderá ser um grande problema para os museus.
Os riscos originados quando se considera o museu como produto de marketing são aqueles ligados à exposição do “produto museu”, a sua pertinência enquanto produto e a sua legitimidade. Esses riscos não parecem, contudo, ligados unicamente a sua requalificação como “produto” e afetam também a instituição cultural, criada para fins culturais. Enquanto dispositivo que ocupa o espaço público que funciona à partir de relações múltiplas e em constante transformação, o museu é necessariamente influenciado por forças e pressões exteriores que o desgastam, por isso sua autenticidade (no que diz respeito a ser fiel à cadeia museológica) não é jamais 100% comprovada, por assim dizer. Sua fragilidade não é recente: é a grande variedade do contexto (da sociedade como um todo) que está em vantagem e que tem efeitos diretos e indiretos sobre o museu. Apesar de um futuro incerto, imaginado como ferramenta de novas estratégias a serviço da economia do turismo cultural, o museu pode testemunhar efeitos benéficos a curto prazo.
NOTAS DE RODAPÉ
1 ICOM Statuts. (1990). Paris : ICOM. p.3. In MAIRESSE, F. & DESVALLÉES, A. (2007). Vers une redéfiniHon du musée ?. Paris : L’HarmaNan. p. 137.
2 NORA, Pierre (2009). Memória: da liberdade à .rania. Revista Musas, n. 4. p. 6.
3 MAROEVIC, I. (1998). Vers la nouvelle définition d’un musée. In MAIRESSE, F. & DESVALLÉES, A. (2007). Op. Cit., p. 140.
4 Ibid.
5 Ibid., p. 141.
6 O’DOHERTY, Brian (2002). No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes. p. 2.
7 JACOMY, Bruno. (2007). Introdução: Instrumentos, máquinas e aparatos interaHvos de ciência e tecnologia exibidos nos museus. In: Valente, M. E, A. (org). Museus de Ciência e Tecnologia. Interpretações e ações dirigidas ao público. Rio de Janeiro: MAST (CIMUSET-ICOM). p.15-24.
8 POULOT, D. (2005). Musées et muséologie. Paris : La Découverte. p. 77.
9 POULOT, D. (2005). Musées et muséologie. Paris : La Découverte. p. 77.
10 MAIRESSE, F. & DESVALLÉES, A. (2007). Op. Cit., p. 14.
11 ASSANTE, C. In BARY, M. & TOBELEM, J. (1998). Manuel de muséographie : peHt guide à l’usage des responsables de musée. Biarritz : Séguier. p. 283.
12 Ibid.
13 ASSANTE, C. In BARY, M. & TOBELEM, J. (1998). Op. Cit. p. 286.
14 A autora considera “turista” não apenas os visitantes oriundos de outros países. Aqui, é essencial nomear “turista” também os visitantes vindos de outros Estados e mesmo de outras cidades.
15 POULOT, D. (2005). Op. Cit., p. 86.
16 OLU, E. (2008). L’argument culturel du «tourisHque», l’argument tourisHque du culturel, symptômes de «la fin du muséal». Revue de Recherche en tourisme “Téoros”. Canada.
17 MORISSET,L.&NOPPEN,L.(2008).Delamuséographieàlastratégie.RevuedeRechercheentourisme“Téoros”.Canada.
18 Ibid.
19 OLU, E. (2008). Op. Cit. p. 15. 20 Ibid.
Marina Pinheiro é gestora cultural e pesquisadora. Produtora cultural independente desde 2003, é especialista em produção musical e de exposições, mediação e arte-educação. Realizou atividades de mediação de exposições no Brasil e no exterior. Pesquisadora, especialista em sociologia da arte e da cultura e museologia com ênfase em gestão de equipamentos culturais. Graduada em Artes Visuais pela Unicamp, mestre em ‘Estudos Culturais’ pela Université Paris 1 - Panthéon Sorbonne e mestre em ‘Mediação Cultural - Concepção e Direção de Projetos Culturais’ pela Université Paris 3 - Sorbonne Nouvelle, já trabalhou no Centre Pompidou e como colaboradora de projetos associativos na França e no Brasil. É animadora cultural do SESC-SP, onde trabalhou durante dois anos como programadora na área de música e educação musical. Atualmente, é assistente do programa “Tecnologias e Artes” da Gerência de Artes Visuais e Tecnologias.