Enquanto meus pés balançam
Nascida sem território,
cria da beira,
nem baiana nem mineira.
Nem menino nem menina,
sempre do lado de fora, sempre à margem.
Nem macacão nem vestido.
Desejo pulsante, corpo fluido,
engrenagem solta, criação de delírio,
espetáculo vida, isso não é teatro,
isso não é uma performance,
meu gênero é fluido,
meu corpo é onda, camaleão sem referência.
Reflexo sem espelho.
Antropofagia sem sentido.
Não quero aqui afirmar nada,
mas confrontar suas certezas consagradas.
Meu desejo não é quebrar nem juntar, mas existir.
Isso é um grito de alerta, não de socorro.
Escorrem em mim versos
de uma poesia desconexa,
sem meio nem fim.
Meu território é confuso,
minhas vértebras são tênues,
sigo em confronto comigo mesma,
em busca de uma construção
que não pretende subtrair nem somar.
Não pretendo divagar sobre conceitos homologados
mas discorrer sobre uma existência em constante criação.
Ainda sou nascente,
não sei se pretendo chegar a algum oceano,
mas percorrer por terras criando leitos para que outres deságuem.
Meta[morfose]
Ainda vagam em minha memória restos de meu corpo. Ainda restam em mim marcas de outras existências. Não sei ao certo de que modo: só sei que é dor, dói aqui dentro, bem no fundo. É complicado dizer, a língua em que tento me comunicar é muito rasa, não dá conta. Eu sou isso e basta. Não sou nem um sopro, um vento, um fogo, nem algo que simule ficção.
Essas coisas não são.
Permanece então o eu sou.
Entro em ebulição.
Dentro de mim existe vapor,
Vento… fogo.
Larvas escorrem em minha boca.
Dentro de mim, combustão.
O que era pedra virou lama .
E corre quente.
Agonia
Você bem que podia olhar aqui dentro,
bem que podia reparar nessa bagunça toda.
É tanto treco jogado,
tanta ferida aberta,
tá tudo tão fora do lugar que nem sei mais.
Você bem que podia reparar,
Menina!
Meu batom borrado,
minha cara amassada,
meu cabelo desgrenhado.
Me sinto como um quadro morto
pendurado na parede
E você nem pra me olhar.
Menina!
Dá pra reparar!
Essa lágrima que caiu
borrou meu rímel;
transbordou vindo do fundo que nem sei de onde.
– Olha, menina, repara direito!
Tá tudo empilhado.
De vez em quando arrasto um monte,
mas sempre acabo empilhando
pra lá mais adiante.
Pode não parecer
mas aqui dentro tá um turbilhão.
Isso que você vê, menina!
É casca seca querendo soltar.
Aqui dentro tem lama
que corre frouxa.
Uma solidão.
Janelas
Só dormi essa noite porque sequei a última garrafa de vodka, dormi de bêbada – não de sono, esse já não sinto há muito tempo. Acordei com os poros mais abertos, cicatrizes de esfaqueamentos internos, é como se eu quisesse sair do meu próprio corpo abrindo um buraco no meio do peito. Meus órgãos dando espaço a coisas que não compreendo, só sinto. Meus poros estão se abrindo, reflexos de um desejo que não controlo, nem vou controlar. A janela do quarto estava aberta. Chovia hoje de manhã, eu já estava acordada, mas fiquei ali imóvel vendo os pingos de chuva caírem sobre o meu rosto. Senti-me de novo no asfalto, caída no chão enquanto me batiam, não pelos pingos de chuva, mas pela sensação de não reagir, de olhar de dentro do corpo como se tivesse uma janela no lugar dos olhos, eu observando de lá sem reação alguma, estática e imóvel. Eu vi, sei que vi porque não dei ao que vi nenhum sentido, sei que vi porque nada serve o que vi, meu rosto como umbral de uma porta para o lado de fora, desconhecido e sombrio, ameaçador. Vou te falar porque não sei o que fazer de ter vivido, não quero o que vi. Eu, prisioneira do meu próprio corpo, mas era meu último refúgio.
Voo
Acabei de nascer, acabei de parir a mim e não tocou a ave maria das seis da tarde, nem tive um seio pra aliviar minha fome da não matéria, acabo de nascer, chorei como um bebê ao abrir os olhos a uma realidade que arde, assopra e bate. Acabo de parir-me para me presentear a infância que não tive. Estou no começo de uma história com o fim determinado pelos mavambos na esquina ou envelhecer sozinha. Acabo de nascer em um parto de metamorfose, doeu, não foi natural, talvez esteja de resguardo esperando os pontos cicatrizarem. Hoje mesmo tentei voar mais uma vez, mesmo assim, continuo aqui dentro. Vivo nesse dilema que às vezes chega até perto do que sinto, aumentam ainda mais as fagulhas.
Não! Não é isso,
pode ser que a altura impeça minha decolagem, ou sou eu mesma que não quero subir mais alto? Talvez meu corpo ainda não o seja? Nem importa o que digo, tento justificar meus medos e acabo me embaraçando em mim mesma. Não é só meu corpo que muda a cada segundo, eu já não sou a mesma há muito tempo. Já não tenho as mesmas necessidades. Tudo que tentei ser antes do que sou agora, já não faz mais tanto sentido. Pode ser que em algum momento foi importante pra mim, hoje é só uma marcação de tempo; restaram-me apenas os fragmentos incompreensíveis do ritual, embora pela primeira vez eu sinta que meu esquecimento esteja enfim ao nível do mundo. Ah! E nem ao menos quero que me seja explicado aquilo que pra ser explicado teria que sair de si mesmo; não quero que me seja explicado o que de novo precisaria de validação humana para ser interpretado. Não tenho bula, não posso ser lida, não posso ser interpretada, o que quer que leia de mim ainda será raso e superficial; vida e morte foram minhas e eu fui monstruosa.
meu corpo perdido no espaço
pseudo programado
órgãos a esmo
plataformas vazias
cérebro fragmentado
massa cefálica de isopor
pedaço de imensidão errância inata
concreto
face oculta
corpo artificial
ciborg
um corpo sem órgãos
* Os poemas publicados aqui são parte de uma coleção de escritos de Jeisiekê de Lundu, intitulada Escritora de Gaveta: são textos em que a linguagem escrita deixa de funcionar como um registro ou como parte das outras linguagens com as quais a artista trabalha, ganhando corpo e potência próprias. Nas palavras da artista, são uma “tentativa de escrever os gritos e expressar de forma poética o início de mais uma transição, se relacionam diretamente com um período de adoecimento psíquico e também de renascimento espiritual e busca por uma revolução pessoal”. Como convidada do Profundanças 2 – Antologia Literária e Fotográfica, publicação organizada por Daniela Galdino em 2017, apresentou uma seleção da coleção Escritora de Gaveta, com escritos produzidos entre 2015 e 2017. Esta mesma seleção, até o momento publicada exclusivamente no Profundanças 2, foi re-publicada aqui, no HIPOCAMPO #8. A fotografia de capa é de Lanmi Tripoli, autora das fotografias de Jeisiekê de Lundu publicadas no Profundanças 2, junto aos poemas da autora.
JeisiEkê de Lundu é nascida na beirada entre Minas e Bahia, mistura montanhas e dendê para criar processos artísticos que envolvem cura, memória, ancestralidade e biopolítica, em uma encruzilhada diaspórica sertaneja no litoral. Artista interdisciplinar, navega nas artes visuais em suportes como a performance e a escultura, cria microfilmes, escreve crônicas, costura e esculpe figurinos, modifica faces utilizando maquiagem e elementos orgânicos ou sintéticos. Atualmente vive e trabalha na cidade de Salvador/BA, cursa Artes na UFBA e mantém o atelier CasaPallet como residência artística.