“É uma grande pena que não haja mais hoje em dia nem possessos nem mágicos nem astrólogos nem gênios. Não podemos conceber, como há cem anos, que todos esses mistérios eram recursos inestimáveis. A nobreza toda vivia, então, em seus castelos. As noites de inverno são longas. Teriam morrido de tédio sem essas nobres diversões. Não havia castelo a que não fosse uma fada em certos dias marcados, como a fada Melusine ao castelo Lusignam […] Cada cidade tinha o seu bruxo ou sua bruxa, cada príncipe tinha o seu astrólogo, todas as damas tinham a sua sina lida, os possessos percorriam os campos, discutia-se quem tinha visto o diabo ou quem o veria.”
Voltaire
Dictionnaire philosophique
Os chefes de Estado assim como os Chefes da Consciência arquitetaram há séculos atrás a destruição que vivemos hoje. Subjugam assim continuamente a Terra, os povos e os animais. É preciso encontrarmos com as forças energeticamente posicionadas a nosso favor, para que a possamos solapar as bases do poder-soberba, provocando assim a sua ruína. Precisamos abrir espaço para a semente de lutas amantes da beleza, equilíbrio e resistência com deleite. Essa é uma magia que temos praticado longamente. Magia para romper a cortina de fumaça das bombas de gás lacrimogênio da Policia e do Estado assassino. Magia para romper as nuvens de engano e confusão, para e-videnciar o ritual e do mesmo tirar o antídoto que curará nossas dores e anseios.
O capitalismo tem sua magia própria: seduz e organiza a vida num passe de contra-magia que muitas vezes não conseguimos fugir, afetando os corpos e tudo o que se proclama como vivo. Controlam vastos recursos de dinheiro abstrato, armas, forças policiais e militares. Realiza um trabalho além do humano, sendo impossível comparar sua força à de um corpo de carne e osso. Então, vai tecendo uma rede de medo ao redor do globo e, ao que tudo indica, planeja para um futuro próximo, a expansão desse Império a outros planetas. Sentimos as nuvens de medo e da confusão, momentos de distração e pura angústia. Impotência ante ao desafio na luta por novos mundos que combatam as estruturas entrincheiradas do poder. Medo e perigo novamente.
O capitalismo envenena a todos: joga com o mais baixo dos individualismos, distribuindo a promessa do lugar ao sol, junto a imagem de uma cidade repleta de cidadãos e cidadãs para cada coração consumidor. Assim, nos mantem embriagados ante a urgência de conexões, solidariedades cotidianas e de nos organizarmos para além dos Templos Democráticos perfumados no presente (ainda) colonial. Investindo na solidão e no desespero através da busca pela história pessoal perfeita, o capitalismo nos transformou em meros seguidores do Sucesso que projetamos sobre nós mesmos. Estamos gorados antes mesmo de nascer, pois não se cria nada além do Eu sou o que sou: completude forjada pela prepotência do Eu. As imagens são poderosas, precisamos entendê-las melhor, pois se articulam magicamente no inconsciente-corpo.
Quando a internet surgiu significou algo, no entanto, hoje é apenas a imagem de um guru fracassado que corta o fluxo das energias que possam nos ajudar. Precisamos fugir do facebook, mas não da máquina. Fatigados nos encontramos, sem paciência, controlando a vida do outro, vigiando tudo e todos, lançando assim sobre nossas mentes o pior dos venenos do capitalismo mundial integrado: a paranoia. Nem toda hiper-realidade traz a alquimia necessária para desmantelar o “real” impotente.
É preciso localizar os pontos desse feitiço, pois muitos de nós estão morrendo, e ao mesmo tempo não se consegue mais criar linhas de resistência para além das codificações contidas no feitiço do vitimismo. A brutal energia da repressão joga no abismo sem volta tudo que se meche. Ela é muito forte, e precisa ser destruída – para que antes que o espírito da vítima recaia sobre nós, possamos pressenti-lo a quilômetros e logo armar a simpatia que fará o mesmo desviar o caminho.
Uma versão fraca da razão colonizou o cotidiano. Não é a toa que muitos que estão lendo esse texto agora estejam ridicularizando-o por sua ausência de “seriedade estrutural” – saiba que quando nos chamam de místicos, não nos ofendemos. A mística é inerente aos rituais cotidianos, aquilo que você chama de sociabilidade ou comunicação, é também ritual.
Uma versão fraca da razão colonizou o cotidiano. Não é a toa que todo pensamento mágico que esteve presente no interior de cada grande cidade, e uma das únicas alternativas (para além da racionalidade fraca) de resolução de problemas, tenha desaparecido brutalmente nos últimos anos. Nenhuma benzedeira ou raizeiro resistiu ao poder da farmácia, assim como poucos filhos e filhas de Santo enxergam futuro na dedicação ao terreiro quando a Universidade é o novo grito de ordem.
Há todo um trabalho de transe por construir, em grupos, e espalhados por toda parte do mundo e do cosmos. Traçar uma estratégia de luta conjunta, poderia devir a expansão de nossa comunidade, e assim seríamos uma poderosa força no mundo mágico, pois quando entramos em ligação, vivenciamos a diferença radical do Fora. Dê adeus a baixa antropofagia da razão que estamos acostumados, recomponha-se de forças outras, inanimadas, inomináveis e ainda não conhecidas (interpretadas) por ninguém, por nós mesmos. A ciência como se conhece nos viciou em respostas, exatidão e fórmulas prontas, a social democracia em violências. A magia pode liberar os espaços e o tempo das forças que pesam as camadas de existência. Esse trabalho de transe nos ajudará a penetrar a fortaleza, a identificar as suas vulnerabilidades, a desatar suas âncoras e romper sua mágica.
É preciso escolher um local para o transe, que seja seguro e onde todos possam trabalhar juntos. Tenha cuidado com sua blindagem e proteção. Para encontrar a fortaleza, encontre os caminhos que a fortaleza penetrou em nós, os caminhos que se internalizaram enquanto poder- soberba, dentro dos nossos grupos e dentro das nossas psiques. Lembre-se que, para realizarmos este trabalho mágico, temos de fazer o nosso trabalho de sombra interior também.
* Texto de 2015, publicado em janeiro de 2016 no Frontier (https://frontierdabruxa.wordpress.com/2016/01/24/sobre-feiticaria-no-combate-3/), site do autor. Posteriormente, nesta mesma linha de pesquisa, Ali escreveu o Notas e-videntes para o fim de um mundo. Sua intenção é criar, através do texto, uma espécie de futurologia crítica, onde a magia é um método de produção de imagens de futuro.
Ali do Espírito Santo nasceu em Cuiabá-MT, mas vive, trabalha e estuda em Porto Alegre-RS. Graduado em Artes Visuais pela UFRGS, dedica-se à performance, à escrita e à criação de fotoimagens. Sua pesquisa se desdobra em suportes variados tendo temas como a hiperficção, as mitologias mágicas e a política como orientações de criação. Foi criador e gestor do projeto Casa Peiro (2015-2017). Em 2016 realizou residência com o grupo de performance La Pocha Nostra, tendo participado de diversas coletivas, entre elas A Sombra da Cruz, na Galeria Península, com curadoria de Gala Berger. Em 2018 participou da performance Capa Canal do artista Hector Zamorra na 17º Bienal do Mercosul, e no mesmo ano realizou o projeto Odoxê na Bronze Residência, sua segunda exposição individual. Em 2019, teve o projeto de exposição “Nada Explícito”contemplado pelo edital do IEAVI em 1o lugar, realizando então sua terceira exposição individual.