para Susan Sontag apresenta uma versão do interlúdio presente na canção It’s Not Enough, de Marina Lima, lançada em 1993, no álbum O Chamado. Nesta edição, o vocal é remixado sobre a base Unknown Desires, de Jared Wilson.
Excerto de para Susan Sontag:
“Não quero só ficar bem na foto, quero dizer a que vim…mesmo que isso me custe revelar coisas que não gosto em mim. Nem sempre gosto dessa cara de alegre, quando sei que tenho tanta dor por trás. Eu não acredito em mais nada 8 ou 80, você sabe eu aprendi demais!”
Twilight Zone
(fala de Bruno Mendonça para o zine Twilight Zone, não editada e transcrita por Pedro Gallego)
Bom, quando o Guilherme me convidou para fazer parte dessa publicação falando sobre a boate como um espaço político – que permite uma reflexão sobre subjetividade, performatividade e a questão do corpo, ou seja, como uma espécie de dispositivo social… Eu pensei num primeiro momento em fazer um texto de caráter teórico e conceitual, porque na verdade isso tem a ver com algumas pesquisas que eu venho desenvolvendo há alguns anos; tanto como artista quanto como pesquisador e que se relacionam de alguma forma com o meu Mestrado que eu intitulei de Poéticas Virais e tratava, entre outras coisas, da questão da AIDS e de como ela afetou a produção cultural contemporânea.
Na pesquisa eu tinha como um dos principais objetos de estudo o coletivo artístico General Idea, um grupo muito importante e que era extremamente ligado também com esse espaço da boate, seu imaginário, a cultura da noite, a cena queer, etc. Mas logo depois que pensei em fazer um texto mais desse caráter, enfim, falando de artistas que eu acho que operam esse lugar como um assunto e levam isso pra dentro do campo da arte, acabei optando por realizar outro tipo de reflexão, porque isso já se expressa de alguma forma e já está um pouco claro e materializado em alguns trabalhos que eu tenho feito nos últimos anos.
Então eu acabei de fato abrindo mão de fazer um texto com esse viés e achei mais interessante partir para uma coisa mais de depoimento e, não sei, nada muito aprofundado, mas que para mim era mais interessante no momento, parecia mais real falar do vivido e fazer uma coisa menos conceitual ou teorizada, embasada. Para mim, parecia um pouco frio, afinal essa publicação não me cobrava necessariamente esse tipo de produção, então eu achei que pela primeira vez seria interessante fugir da própria figura do pesquisador. Muitos dos ensaístas que me interessam como o Foucault, por exemplo, viviam o que escreviam, então também tem isso. Eu acho que o campo da experiência, enfim, como o próprio Deleuze falava – olha, já estou teorizando de novo, mas enfim –, às vezes pode ser muito mais interessante por ser esse lugar da vida. Mas a par dos teóricos que me interessam e dos artistas que eu tenho pesquisado nos últimos anos, eu acho que esse depoimento traz questões que estão em contato com isso e obviamente respondem a esse meu interesse e contam um pouco de como eu enxergo essa potência. Esse depoimento então, é uma reflexão sobre esse lugar da boate como um dispositivo político e artístico.
Bom, eu acho que tudo começou lá atrás. Meu pai e minha mãe eram muito ligados à arte, lembro-me de coisas que já foram de certa forma me levando para isso. Eu lembro do meu fascínio, por exemplo, por figuras que na época eu não entendia muito bem o porquê mas elas me fascinavam muito, como a Grace Jones, a Kate Bush, a Siouxsie do Siouxsie & the Banshees, enfim, que eram artistas que minha mãe escutava, assim como figuras do rock nacional, como a May East, que foi vocalista da banda Gang 90 e as Absurdettes e que eu achava muito interessante, tanto enquanto imagem como música!
De alguma forma aquilo me chamava muita atenção. Lembro também de uma vez que aconteceu uma coisa muito interessante – nunca mais vou me esquecer disso – quando eu tinha uns 13 anos, minha mãe me levou no museu para ver uma exposição do Robert Mapplethorpe. Era a primeira vez que o Robert Mapplethorpe tinha uma grande exposição no Brasil, foi no MAM, e não queriam me deixar entrar porque tinha uma faixa etária e minha mãe virou e falou assim: – Eu me responsabilizo!
Eu fui muito privilegiado nesse sentido, por ter crescido numa casa, enfim, onde se circulou muita referência bacana. Tanto que dentro da minha própria casa eu nunca tive problema com minha sexualidade e tal. Na verdade, isso pode ter sido muito bom, mas me causou alguns problemas também porque eu me sentia muito confortável dentro da minha própria casa e quando eu saía era de fato quando acontecia o choque com o mundo. Por eu não ter uma postura normativa dentro da minha própria casa, por esse choque não começar de dentro, essa lida com o fora foi muito difícil, eu acho que por isso na escola eu acabei me conectando com pessoas que de fato eram mais parecidas comigo, assim, talvez fossem as pessoas que mais fugiam do padrão de certa forma.
Com 15 anos acho que foi o ápice e aí eu estava bem envolvido com essas pessoas na escola, enfim, porque já sabendo que eu era gay – e você é gay e fora do peso, então você é realmente fora, né? E aí foi muito boa essa turma da escola porque foi quando eu me envolvi efetivamente com algumas cenas que acabaram me levando para essa vivência da boate, como esse lugar possível. Essa turma era legal porque era uma mistureba, na verdade, tinha o pessoal mais ligado à música eletrônica e as pessoas mais do rock. Eu tive sorte porque era um pessoal bem antenado, circulou muita coisa por ali, consumíamos muita informação, víamos muito filme, ouvíamos muita música, íamos a muitos shows, festas e era engraçado porque hoje eu penso como é que chegávamos nisso tudo, porque na época a internet era ainda um pouco limitada em termos de redes sociais, mas de fato éramos ratos de myspace, fotolog, essas coisas. Ah! E dá-lhe RG falso! Bom, a partir desse momento, a coisa foi se abrindo… Na verdade, tudo estava ali se construindo, mas era também um grande enigma. Mas eu acho que depois dessa fase que eu tinha sido bombardeado com muitas informações e a coisa se abriu, chegou a época da faculdade onde, de fato, eu comecei a entender conscientemente esse lugar da noite como, enfim, um espaço em que eu podia ocupar de alguma forma.
Na época da faculdade eu comecei a frequentar outros lugares. A Lôca, obviamente era um lugar que a gente adorava ir, era muito interessante, a Lôca foi um lugar muito importante para mim. Eu nem consigo talvez narrar ou colocar aqui em tão poucas palavras todas as experiências que foram vividas ali. Na época da faculdade, eu acabei me conectando com pessoas – de novo – que, a meu ver, tinham alguma ligação com o que eu, sei lá, me relacionava afetivamente em termos de estética, etc. Com essa turma da faculdade comecei a frequentar lugares que eu acho que foram realmente muito importantes para mim pois, foi quando eu comecei a refletir sobre esse lugar da boate como um dispositivo social, político e artístico.
A Torre, nesse sentido, foi inegável – pra quem me conhece, sabe que eu sou um grande saudosista de lá, existe uma eterna nostalgia –, assim como o Susi in Transe, a Ampgalaxy, o Lov.e… Não sei, nessa época a gente saía muito, íamos a muitos lugares e o que eu acho que começou a ficar forte ali para mim era que aquilo (que óbvio, nunca deixou de ser entretenimento e diversão) estava tomando um outro valor, parecia que eu entendia sem teorizar muito as outras camadas que passavam por ali. Eu acho que pelas coisas que eu estava vendo no momento da faculdade, época em que eu comecei a me aprofundar muito – vamos dizer assim, intelectualmente falando –, fez com que a boate ficasse mais interessante também, um lugar que não era só pra dançar, etc. – embora fosse.
Nessa época esse entendimento maior que eu tinha sobre esse lugar de fato, politicamente falando, como um lugar onde você pode ser e ponto, você é o que você quiser e é um lugar onde você pode sobreviver, no sentido de sobreviver ao mundo, sei lá, como uma linha de fuga, uma válvula de escape, uma tangente, era uma sensação muito forte. Eu estava estudando Artes na faculdade e parecia que era mais um lugar onde eu podia ver arte além da universidade, da galeria e do museu. Parecia que eu ia para a boate também pra ver coisas que eram arte, sei lá, ou que era uma arte que me interessava mais. E só voltando a uma parte importante, essa coisa de ser gay e fora do peso… Bom, eu lembro quando eu conheci a Divine e o Leigh Bowery… Aquilo foi incrível também, foi muito revelador, assim, por eles representarem tudo isso e foi mais ou menos nesse mesmo momento também.
Figuras como a Cláudia Wonder, a Charlotte Maluf, entre outras, foram também muito fortes para mim. Enfim, todas essas pessoas… Tantas pessoas… Eu acho que justamente por tudo isso que eu acabei depois me interessando talvez, de certa forma, por artistas que integravam esses dois ambientes, assim: o ambiente da arte, ARTE, né – com caps lock, sei lá, isso no senso comum do que é a Grande Arte ou do que é arte em termos institucionalizados ou de historicidade – e dessa arte que surgia ali na boate. Uma grande parte dos artistas que me interessam são artistas que de certa forma refletem esse ambiente como um dispositivo – como eu já falei, social e político. Meu interesse tanto como artista quanto como pesquisador em uma grande parcela da minha produção se volta para isso e eu acho que vem desse encontro, que aconteceu ali naquele momento específico.
A Liana Padilha, do No Porn, foi talvez uma das referências mais importantes para mim, ela escreveu no Facebook esses dias: “No Xingu… todo mundo era amigo e isso não é pouco”. Eu entendo muito essa frase. Foi na boate que eu comecei a trabalhar também porque foi onde eu fiz meus primeiros contatos profissionais, foi onde eu fiz grandes amigos e foi onde eu vi arte.
Bom, aí voltando para outra história, mas que também tem a ver com isso… São Paulo depois daquele momento ali da Torre etc, as coisas foram fechando, foi muito esquisito. A gente passou por um momento de limbo bastante estranho na cidade. O Eclético’s e o Netão, sei lá, eram tipo assim um respiro incrível dentro desse limbo que ficou. Eram ali os lugares de fato que traziam um pouco daquilo tudo de novo. Talvez numa escala menor, mas traziam. A festa Posh! por exemplo.
E aí depois, mais nos últimos anos voltou, eu acho, uma potência nesse sentido por projetos como a Festa Mel e a Tenda – que é do próprio Guilherme Falcão com o Tiago Guiness –, que trouxeram uma possibilidade de sobrevivência.
Essa questão da boate como esse lugar ou não lugar tem muito a ver com essa noção de sobrevivência, de sobreviver, de subverter. Talvez para não morrer. Não sei, é difícil viver. Acho que se torna um lugar possível, um lugar onde as duas pulsões andam juntas, vida e morte. Então esses projetos recentes trazem essa possibilidade de sobrevivência e de operar politicamente e artisticamente a boate de novo. Além disso, eu acho que tem muito a ver com o momento que a gente vive da cidade, toda essa pauta de gentrificação, de gourmetização, etc. Nunca se debateu tanto também a questão queer, trans, gênero. Esse tipo de debate ganhou uma urgência novamente, enfim, eu penso muito sobre isso.
Tem uma diferença nesse novo momento, acho até interessante o nome do projeto do Guilherme e do Tiago ser Tenda porque a tenda é algo que se arma e ela é visível, não é um esconderijo. É um esconderijo também, é muito engraçado, porque tem essa visão dupla mas ela é visível, não é uma trincheira, por exemplo, sei lá, uma casamata. Não, ela é visível! Então também tem essa questão nova de tornar público esse espaço da boate. Eu acho que a ideia de inferninho – muito por conta do momento que a gente vive a cidade – caiu por terra. Sim, é ainda um lugar em que você vai e entra e tudo lá dentro acontece, mas tem um movimento de se invadir a rua também, de um empoderamento da esfera pública. Isso é muito interessante!
Por outro lado, eu reflito muito sobre como essa nova geração que tem sei lá dez anos a menos que eu, ou mais, e que muitas vezes são meus próprios alunos e acabam frequentando os mesmos lugares que eu, essa nova cena… Fico observando essa geração e analisando como ela lida com esse espaço da boate, se é dessa mesma forma, como um dispositivo político.
Mas, enfim, esses projetos – e a cada hora aparece um novo na cidade – uns têm mais força do que outros. São projetos que mantêm esse lugar da boate vivo, como esse espaço em que vida e morte tão ali, arte e vida, enfim, esse lugar de sobreviver, de ser, de não ser.
Eu poderia falar aqui de outros mil nomes, enfim, ou que foram importantes para mim nesse sentido, nesse retrospecto, ou que são agora porque estão ativando, de fato todas essas forças; mas seria uma lista muito grande – o que é bom, que mostra que isso continua sendo feito no aqui-agora e que por outro lado já rolou muita coisa. Mas para terminar, eu queria retomar uma música da May East. Ela fez um disco chamado Remota Batucada – acho esse nome muito interessante da gente pensar também. Acho que é importante não deixar esse espaço ser uma remota batucada. Nessa música, chamada Twilight Zone, ela diz:
Existe uma zona entre
A luz e a sombra
O desejo e o medo
Onde eu me auto-fotografo
Lá não tem gravidade
Tudo é permitido à visão
O olho rompe sua órbita
Meu cabelo arrepia
Na Twilight Zone
Nada é proibido
Tudo é possível
É só imaginar
Eu vejo minha nuca
Todos os defeitos do Spielberg
Eu mordo minha isca
Comentário de Pedro Gallego: Foi muito bom ouvir seu relato de impressões e vivências dessa cena que continua acontecendo e em transformação, mesmo que as nostalgias comparativas tragam algum pesar para o que se vê agora. Acho que compartilhamos de algumas visões sobre o papel da diversão e entretenimento presenciais como potências artísticas, políticas e sociais extremamente envolventes, que se embrenham na gente como causas e efeitos de muito que vemos na vida e na arte, como um lado b de remixes numa trilha sonora de vale tudo que vai ao ar depois de Emmanuelle. Engraçado que eu sinto essa vivência como um convite para se posicionar e se fundir, ser/ver/ter/conhecer alguém e ninguém ao mesmo tempo, e assim acho que essa instagourmetização toda pode também ser uma forma – histérica, que seja – de empunhar um estandarte, uma sinalização que, hoje em dia, se beneficia desse aporte quantitativo para fortalecer e projetar o que se pretende dizer e fazer, cabendo a todos o traiçoeiro papel de equalizar essa polifonia e modelar as concessões que rondam essas iniciativas, sujeitas à avidez por normatização, lotação e faturamento progressivos.
Nota do autor: Convidar o artista Pedro Gallego para realizar a transcrição deste relato não foi algo aleatório. Pedro desenvolve um trabalho em que o depoimento aparece tanto como um método quanto uma linguagem para se refletir acerca de questões como narrativa, ficção e realidade. Além disso, o artista esteve bastante presente em diversos momentos descritos no relato.
* A peça sonora para Susan Sontag, de 2015, é um desdobramento do zine Twilight Zone, produzido no mesmo ano por Bruno para o extinto selo CONTRA – de publicações independentes, organizado pelo designer e DJ Guilherme Falcão.
Junto ao selo CONTRA, o zine Twilight Zone já foi apresentado na Feira Plana, na Feira Tijuana e na Feira de Publicações Independentes do SESC. O texto Twilight Zone foi publicado em 2016 no Jornal de Borda n.3.
Susan Sontag (1933-2004) foi uma escritora, crítica de arte, feminista e diretora que, de forma autêntica e transgressora, viveu e pesquisou a cultura do século XX.
Bruno Mendonça tem desde o começo dos anos 2000 pesquisado a linguagem textual e suas diversas tipologias e desdobramentos, expandindo para o campo da performance e outras mídias. Há mais de 10 anos tem se dedicado à prática da spoken word, também pesquisando formatos como o da lecture performance, entre outros. Normalmente os conteúdos abordados em seus trabalhos giram em torno das relações entre cultura, política e economia. Foto: Carlos Issa (Objeto Amarelo).