O LUGAR DO DISSENSO

 

 

O LUGAR DO DISSENSO[1]

 

A TERCEIRA MARGEM DO RIO[2]

Existe um problema de origem, uma preocupação acentuada com o começo e o fim. A necessidade de hipercodificação do sensível e a racionalização abundante das coisas nascem de um desejo de diálogo, de querer entender (dar sentido), compartilhar e inventar a experiência que é a vida, o estar vivo. Muitas vezes é preciso se lembrar do que vem antes, ou melhor, se lembrar daquilo que é/está. O inalcançável que a linguagem busca ao mesmo tempo que o acoberta e o transforma, o ponto de vista da imanência. Não se trata mais da partida ou da chegada, mas o que acontece nesse entre, na terceira margem do rio.

Vivemos hoje com uma sensação de autocontrole, gerenciando e construindo nossa imagem e história. Entorpecidos por uma noção de liberdade pautada no consumo e em falsas possibilidades de escolha, travestida de democracia. O estado já não parece dar conta de representar a sociedade e o sujeito. A própria ideia de nacionalidade entra em crise ao mesmo tempo que as fronteiras se fortificam. O desejo é colocado como justificativa para ação, mas são raros os momentos em que nos perguntamos o quanto nossos desejos e escolhas são estruturados por uma cultura ocidental, branca, capitalista, heteronormativa e, ainda, no nosso caso, pós-colonial.

A descolonização do pensamento, da experiência e do desejo é um exercício diário. Introduzir novas variações, referências e conteúdos na nossa imaginação é um caminho para se deslocar perpectivas e instaurar novos mundos. É naquilo que desloca, que se suspende, deriva, naquilo que se deixa perder, é no movimento e na pulsão que existimos.

Neste contexto biopolítico, nos esquecemos muitas vezes de perceber e entender a importância da cultura no nosso dia após dia. É preciso acabar com a cissão que divide o homem, tempo de entender as coisas por inteiro, perceber suas partes sem perder de vista o comum. Encontrar a diferença, produzindo novas possibilidades de vida, criação e convívio, é um desafio, uma escolha.

 

CULTURA É A REGRA, ARTE É A EXCEÇÃO[3]

Anos se passaram e ainda gosto de trabalhar com as definições de arte e cultura em Je Vous Salue Sarajevo. Não apenas pela enunciação da cultura enquanto regra e arte como exceção, mas pela complexidade que surge nesta afirmação, longe da dicotomia e/ou da dialética, mas pela relação intrínseca de dependência para coexistência de ambas. Existe um campo tensivo entre a arte e a cultura e a criação de um lugar de dissenso é justamente a potência desse encontro. Para isso, é preciso tirar o lugar específico da arte, ou melhor, produzir novos lugares onde a regra e a exceção se confundem.

A cultura muitas vezes pode operar como uma máquina de normatização, atuando pelo consenso e o politicamente correto – nivelando, equalizando e dosando as intensidades. Ao mesmo tempo em que sentidos e comportamentos são incorporados, adaptados e difundidos em larga escala e alta velocidade pela cultura, existem alguns automatismos, hábitos e estruturas do pensamento extremamente difícies de mudar. Existe uma distância entre o pensamento enquanto discurso e o pensamento enquanto ação; e nessa operação existe um conflito. É nessa zona de atrito, nesse campo de forças, que a mudança se torna possível e acontece. É preciso produzir novas estruturas de pensamento que sejam incorporadas e atravessadas pela nossa cultura.

A arte tem o poder de produção e intensificação do dissenso, entendendo o dissenso como esse campo da multiplicidade, de producão da diferença e do potencial da divergência. Por se distanciar da lógica da finalidade e operar através da experiência estética, do campo sensível, a arte consegue criar rupturas, mudar o curso da vida, produzindo e agenciando novas perpectivas.

Assim como a política, a arte tem o poder de criar ficções. Uma ficção não busca a representação e apresentação da vida ou de uma realidade, mas mostra o embate direto do que ela é com a potência do que ela poderia ser. Por isso a arte é sempre política, por mais que opere com uma política própria. A produção de um lugar de dissenso não é uma exclusividade de algum tipo de instituição, espaço ou lugar, mas uma postura micropolítica em relação à vida.

Resta-nos perguntar: como realizar a criação, mediação e agenciamento da arte hoje de uma forma que potencialize a produção da diferença e do dissenso? Quais seriam os lugares existentes e inexistentes possíveis para que esses agenciamentos aconteçam? Como produzir diferenças que atravessem diretamente nossa cultura transformando as estruturas do pensamento e possibilitando novos modos de existência?

 

O LUGAR DA ARTE

O lugar do dissenso é um lugar de encontro. Um lugar não é necessariamente apenas uma demarcação de um espaço físico. Assim como toda história, todo lugar é inventado e tem seu próprio tempo. Um lugar nunca pode ser um, nenhum lugar existe sozinho. Todo recorte traz dentro de si mesmo a referência do que está fora, do outro, do todo – uma cosmovisão. Sendo assim, um lugar carrega consigo possíveis modos de vida. Existem lugares específicos e/ou não específicos para a arte, a arte deve ter o poder de invasão (e criação) de seus e de outros territórios, arte não deve pedir licença.

Seja uma instituição de grande porte, espaço independente, centro cultural ou até mesmo um espaço público, urbano, o formato expositivo se tornou o lugar e uma das formas mais recorrentes do acesso à arte ao público. Apesar dos questionamentos desse formato também serem frequentes, a atuação e presença de um curador, o uso do texto curatorial como apresentação e contextualização dos trabalhos e das articulações propostas, os créditos e legendagens das obras, os programas de monitoria, mediação e ações educativas, folder, catálogo, entre outros artifícios, nos direcionam para um pensamento expositivo em comum. Seria este o único lugar e forma de se permitir esse encontro entre o público e a arte? Por que diferentemente do cinema, do teatro e da música, as artes visuais precisariam de um auxílio e mediação na sua “compreensão” e recepcão? O que se espera em relação a produção de conhecimento nas artes?

Grande parte dos agentes e equipamentos culturais assumem um papel apaziguador das tensões inerentes da arte – uma perversidade similiar à percepção de cultura citada anteriormente – “protegendo” de certa forma o público do desconforto e estranheza, diminuindo seu embate, providenciando um distanciamento legitimado pela sua condição do “ser arte”. A própria cissão e existência de lugares específicos para que arte exista e aconteça nos leva a criar uma distância segura aos riscos que são imanentes de uma obra de arte. Claro que algumas obras trabalham justamente com essa questão e precisam estar em um espaço específico de arte (museu, galeria, etc.), um lugar que proporciona esse deslocamento e sua legetimação.

Em nome de uma pretenciosa desqualificação do público e de um hábito cultural, é comum o uso de todos os artíficios de uma exposição em proveito de um esclarecimento, explicando, justificando e reduzindo a multiplicidade de sentidos e o potencial de cada obra (e da articulação entre obras) em uma argumentação de uma hipótese curatorial. Entendo a importância desse pensamento expositivo, mas são raras as exposições que justamente optam por intensificar essa divergência de pensamento, buscando uma multiplicidade de leituras e de experiências, permitindo que a criação de sentido venha a partir da experiência de quem vê/sente/ouve, não como um conhecimento dado, mas construído em conjunto – nesse lugar entre a obra e quem a presencia.

A partir do momento que uma obra é introduzida no mundo, independentemente de compreensão e contexto, ela possui uma vida própria, não é obrigatoriamente uma via de comunicação direta, nem mesmo deve ou nos exige algum tipo de “interpretação”.

 

APROXIMAÇÃO E REDUÇÃO DAS DISTÂNCIAS 

A escolha de se ocupar com essa etapa específica da cadeia de criação (o encontro da arte com o público) se dá, justamente, pela importância desse momento de tornar a arte pública, permitindo que ela seja, exista e aconteça. Estes questionamentos não nos direcionam para o fim dos lugares específicos de arte – sabemos a importância e necessidade desses espaços -, mas buscam por uma multiplicidade de lugares para que arte aconteça, sejam específicos ou não, assim como público, privado, grande ou pequeno porte, rural, urbano, etc. É na multiplicidade dos lugares do encontro entre a arte e o público, que novas possibilidades de pensamento em arte se tornam possíveis.

Uma das formas que se mostrou interessante de se permitir o encontro entre a arte e o público é a abertura do processo de pesquisa, criação e execucão de uma obra. A criação de um vínculo e a aproximação direta do artista e o público potencializa essa multiplicidade de sentidos e permite que o “conhecimento” seja produzido através do olhar e da experiência de cada um. Ver uma obra antes de estar concluída, em processo, acompanhar um artista, participar de falas, workshop, poder presenciar suas transformações, as escolhas do artista, referências, seu jeito de falar, sua percepcão de mundo, ou até mesmo participar de algum modo desse processo, são outras formas de se permitir e agenciar esse encontro.

A dismistificação da obra e do artista também colabora com a redução das distâncias e minimiza a glamourização gerada pelo mercado da arte. O texto curatorial também pode e deve ser entendido como um lugar mais criativo e menos explicativo, potencializando as múltiplas camadas de leitura, mesmo que seja trazendo questões históricas, filosóficas e conceituais, mas sem cair na justificativa, no resumo, na sinopse, no afunilamento dos sentidos.

Muita mais do que modelo ou anti-modelo para a construção desse encontro entre o público e as obras de arte, é interessante se pensar em lugares, mantendo assim não apenas o lugar como um espaço físico, mas nesse espaço subjetivo que surge no encontro entre o artista, a obra, o público, o curador e o contexto.

 

OUTROS LUGARES:
O INDEPENDENTE,
O HERÓI DA CULTURA
E O FANTASMA DA SUSTENTABILIDADE 

Sem querer me perder na discussão da problemática expressão independente e suas variações (debate recorrente e presente de outras formas nesse livro), aproveito este espaço para uma pequena contribuição da minha percepção do termo. Para além de um ideal ou de uma associação a uma liberdade incondicional, “independente” hoje está diretamente relacionado a uma condição do fazer (o seu engendramento) e o seu modo de operação – uma prática ligada ao acontecimento, muito mais do que um pré-conceito ou discurso inicial. Por mais que o próprio modo de fazer pode, e acaba sendo, uma forma de discurso.

Quando um projeto, espaço, iniciativa, festival, mostra, artista, curador se coloca como independente, não significa assumir uma postura de isolamento, neutralidade ou distanciamento político e econômico ou, até mesmo, do seu contexto. Significa que com ou sem recursos financeiros (públicos ou privados), com ou sem apoio institucional, com ou sem autorização ou legitimização de qualquer natureza, o projeto vai acontecer, ou seja, independente de como será realizada, a iniciativa se mantém viva (o mesmo é válido para um curador ou artista independente, sendo que ele mantém seu trabalho ativo independentemente dos seus meios de produção).

Claro que para manter uma iniciativa ou projeto existe uma série de demandas e riscos, mas a ausência de recursos financeiros acaba sendo o grande obstáculo. Por esse motivo, muitas vezes os “independentes” são considerados projetos de pequeno porte e/ou sem recursos.

Se por convenção, desejo, discurso ou hábito nos chamamos e nos reconhecemos como espaços independentes é porque fazemos e porque queremos e precisamos de representatividade para criar estruturas que resistam ao tempo – apesar das semelhanças e diferenças (que são muitas) dos nossos espaços. Se o independente está relacionado ao fazer, não podemos esquecer de colocar a dimensão e importância do tempo na análise desse processo, assim como a relevância dos diferentes modos desse fazer. Acredito que a multiplicidade do “como” engendrar uma iniciativa ou projeto seja a base necessária para resistir ao tempo.

O herói da cultura sempre existiu e continua sendo uma postura recorrente e presente na cena cultural independente, incluindo artes visuais, teatro, dança e cinema. Acredito, com certo romantismo, na possibilidade de mudança do mundo, ou melhor, acredito que outros mundos são possíveis. Com esse intuito, compartilho de uma postura de resistência, de guerilha, de embate, mas sem cair (espero eu) na armadilha do ego do herói da cultura.

Existe um pensamento comum que para se trabalhar com arte e cultura exige sacrifício, como se esse fosse o único modo de trabalho inerente à própria condição de se fazer arte. Há um perigo nesse pensamento, já que ele pode ser associado a uma glamourização às avessas, que não escapa de uma verticalização e hierarquização da cena cultural e de seus agentes. A preocupação é tão grande com o modo do fazer (a entrega, o sacrifício, a ideia de resistência), que esquecemos de analisar muitas vezes o que tem sido feito.

Cabe a cada um viver as suas escolhas, com ética, mas acredito que se essa postura do herói da cultura existe, já que sacrifícios, muitas vezes, são necessários, ela não deve vir sozinha se realmente queremos mudar e instaurar novas possibilidades de trabalho no campo da arte e cultura.

Outra aparição que assombra a rotina dos espaços independentes é o fantasma da sustentabilidade. Nos últimos dez anos, o termo sustentabilidade invadiu o vocabulário não só na área da cultura, surgindo uma série de especializações, cursos e pós-graduações com o tema. Brinco e personifico a sustentabilidade enquanto um fantasma pois ela sempre está presente e próxima, ao mesmo tempo que nunca parece se concretizar.

Por um período, cheguei a acreditar que esse fantasma da sustentabilidade e os aspectos financeiros e ecônomicos que assombram a cena cultural, atrapalhavam as buscas e a criação dos espaços independentes. Pensei que em um modelo ideal, as pessoas que compõem esses espaços deveriam se ver livres de sua dependência financeira, mantendo assim a criação e suas buscas de forma preservada, “livre”.

Hoje penso que a própria necessidade de sustento dos espaços independentes e de ter que trabalhar, além das questões curatoriais, estéticas e conceituais, com o lado econômico e financeiro como qualquer projeto ou empreendimento, pode ser visto como um potencial. A formação seja de público, dos artistas, como também sua própria equipe, gestores e curadores é o alicerce dos espaços independentes. Esses projetos produzem outras formas e estruturas de gestão, possibilitando novas relações profissionais e formações dinâmicas e transdisciplinares – condições que intervêm não apenas na proposta dos espaços, como também na produção que surge ali dentro.

 

CAMPINAS

Campinas sempre foi uma cidade complicada, sua proximidade com São Paulo traz vantagens e desvantagens. Ao mesmo tempo que permite uma aproximação e circulação de artistas, projetos, iniciativas, exposições e serviços da capital, ela cria uma certa distância entre a cidade e a sua própria produção. Ao invés de buscar uma programação cultural na cidade, muitos veem São Paulo como um pólo mais atratente, tanto para ver exposições, peças, espetáculos de dança e frequentar restaurantes, como para encarar uma vida noturna.

Existe uma ideia em comum: Campinas tem os problemas de uma cidade grande, mas não tem nenhuma de suas vantagens – consideração que tem suas verdades. Um complexo de superioridade e de grandeza também é recorrente, basta andar pelas ruas comerciais e encontrar: “o melhor”, “o maior”, “o mais barato”, “o mais incrível”, seja sapato ou coxinha. Campinas é uma cidade em que grande parte do seu lazer é o consumo, são poucos os lugares e programas possíveis que fogem dessa lógica.

Sem grandes opções de transporte público, a mobilidade na cidade também se tornou um problema, sendo um dos motivos e consequências do distanciamento de Barão Geraldo (distrito de Campinas, “cidade universitária”, que hospeda a Universidade Estadual de Campinas e a Pontifícia Universidade Católica de Campinas) de seu centro; afastando os estudantes, suas pesquisas, práticas, iniciativas e projetos da própria cidade como um todo. Algumas ações como as ciclovias finalmente começaram a surgir na cidade, mas, ainda assim, a maior parte dos deslocamentos é através do carro.

Com prefeito sendo cassado ou assassinado, Campinas tem um passado político complicado. Vivemos uma história em que as políticas públicas de longo prazo parecem ausentes, falta planejamento e estrutura na área da cultura, esvaziando, deixando às moscas ou até mesmo destruindo grande parte do nosso patrimônio.

O que temos – e muito, e cada vez maiores – são shoppings centers; é lá que estão todos os cinemas, exposições, teatros, restaurantes e a maior parte do lazer que a cidade oferece e usufrui. Um lazer que possui uma série de catracas, muros e barreiras invisíveis. Sabemos muito bem que entrar em um shopping não é algo possível para todos.

As políticas de produção e financiamento público de projetos, grupos, coletivos e espaços na cidade se resumem ao FICC – Fundo de Investimentos Culturais de Campinas – edital em constante transformação, um desdobramento do antigo Prêmio Estímulo. Ainda que tenha melhorado (e muito), ele ainda opera com termos, conceitos e uma visão de projetos culturais um pouco limitada, assim como exigências e contrapartidas sem sentido, como por exemplo, no caso de artes visuais, a doação de uma obra para o acervo da Prefeitura, que, se durar e for preservada, raramente vai ver a luz do dia.

Sabemos também que os editais são uma forma de realização de projetos específicos e pontuais, e que não colaboram muito na construção de iniciativas e projetos de longo prazo e/ou permanentes – por mais que ainda seja um grande mecanismo de captação de recursos da nossa programação. A lógica e regulamento da maioria dos editais cooperam para a criação dessa relação de dependência; são raras as possibilidades de aquisição de equipamentos, reformas ou compra de espaço ou qualquer estrutura que ultrapasse a duração do projeto aprovado, sendo necessário começarmos do zero a cada projeto. Essa inconstância também acontece quando o assunto é equipe, pela dificuldade de manter uma equipe interna fixa e com recursos e benefícios de acordo com o mercado, sempre temos que formar e capacitar novas pessoas.

 

ESPAÇOS E POLÍTICAS CULTURAIS DA CIDADE 

Fazer uma análise dos espaços e equipamentos culturais na cidade é difícil, afinal a instabilidade desses projetos e iniciativas ou, até mesmo, a falta de uma proposição curatorial, dificulta a resistência dos espaços ao tempo, assim como construir uma reflexão crítica de sua programação e proposta. Deixemos de lado o Centro de Convivência Cultural de Campinas Carlos Gomes, já que grande parte de seu espaço está fechado por questões estruturais – apesar de sua área externa ser ocupada diariamente por jovens e com a Feira Hippie aos finais de semana -, ou até mesmo, o Teatro Municipal José de Castro Mendes, espaço que foi reaberto depois de ficar cinco anos fechado para reforma.

Tomamos como exemplo, o Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MAC), que não possui verba própria para produção de exposições nem mesmo uma equipe fixa ou curador. Seu funcionamento e proposta se resumem a um edital de ocupação anual, oferencendo o espaço, a estrutura disponível e auxílio na divulgação. Porém todos os recursos, incluindo financeiros, ficam a encargo do proponente do projeto.

O Museu da Imagem e do Som de Campinas é um caso à parte e possui sua potência. Apesar da ausência de uma proposta curatorial, o MIS, pela demanda e carência por espaços na área central da cidade, possui uma ocupação orgânica (mais livre), permitindo que as pessoas, os projetos e as iniciativas tornem aquele lugar vivo – uma ocupação de fora para dentro. O cineclube e as exibições audiovisuais do Museu continuam resistindo ao tempo, projeto fixo da casa, com curadores e programadores convidados e/ou voluntários. Frequentei, por exemplo, durante um ano, sessões de esquizodrama e clínica poética com o coletivo Devir, assim como outros projetos experimentais que só podem existir a partir de uma redução de custos – por isso a não locação de um espaço, possibilita que iniciativas como essa continuem existindo.

A Estação Cultura de Campinas também tem uma ocupação interessante, cada vez mais conquistando espaço, agregando projetos e iniciativas para dentro. Apesar de potente, esse formato de espaço e centro cultural mais aberto, orgânico e dinâmico, fazendo com que o próprio público e agentes culturais da cidade ocupem e preencham sua programação, apresenta seus problemas. A ausência de um pensamento curatorial tem como consequência uma inconstância na programação, nas políticas de formação, manutenção de patrimônio e, até mesmo, na proposta do espaço. Esses espaços são interessantes, mas não devem ser o único modelo de gestão cultural e encontro do público com a arte e cultura em uma cidade.

O modelo SESC já é conhecido e a nossa cidade conta com uma unidade, que tem suas áreas de lazer e esportes sempre bem ocupadas, mas nem sempre nos teatros, auditórios, mostras e exposições. Nossa unidade do SESC encontra ainda dois problemas centrais: a divulgação e estacionamento, já que grande parte da cidade se locomove apenas de carro.

Não podemos deixar de reconhecer a importância e o papel dos Pontos de Cultura na cidade, ligados à tradição e cultura popular ou grupos minoritários,transformando pela base seus locais e contextos. Tive a oportunidade de trabalhar por dois anos, como professor no Ponto de Cultura Maluco Beleza, voltado para usuários do sistema público de saúde da cidade – Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) – e sua comunidade local, seus projetos são admiráveis. Alguns pontos, grupos e espaços voltados às artes cênicas também são recorrentes, principalmente em Barão Geraldo. Apesar de uma certa acomodação nebulosa que paira na cidade, não podemos deixar de reconhecer uma melhora em algumas políticas públicas no município.

Existem iniciativas, coletivos, projetos e um recomeço da cena cultural de Campinas, mas ainda muito incipiente e sem estruturação ou articulacão como um todo; falta a construção de uma rede

entre os agentes e equipamentos da cidade. A grande dificuldade de Campinas sempre foi resistir ao tempo, sendo necessário recomeçar do zero de tempos em tempos. Precisamos construir um plano mais amplo, estruturado e interligado, e diminuir nossa dependência do poder público (criando e escolhendo novas dependências), obtendo outros modos de gestão, estruturação e captação de recursos.

Com relação à arte contemporânea, por mais que existam artistas, cursos e universidades, são mínimos (e inconstantes) os espaços, iniciativas e equipamentos de Campinas; e essa lacuna influenciou diretamente nos projetos e escolhas do Ateliê Aberto, que operou muitas vezes como um centro cultural na cidade.

 

CONTEXTO

Em tempos de crise, é comum ouvir que é preciso cortar verbas, recursos e políticas culturais, já que a cultura e arte (assim como esporte) são excessos, em contraposição à saúde, alimentação e educação, recursos mínimos para a sobrevivência em sociedade. A nossa percepcão de educação tende ainda a ser bem limitada, já que opera com uma visão de um conhecimento dado, da repetição, do fato, da fórmula. De qualquer forma, não temos como separar ou deixar de lado a cultura na análise do nosso contexto.

Por exemplo, a corrupção no Brasil e a atual crise não podem ser vistas apenas sob a esfera econômica, ela é um problema cultural, que vem desde de uma postura “de querer ganhar mais em cima do outro”, a noção do automerecimento, a “política do malandro”, não pagar impostos, o eterno estudante (falsificação de carterinhas para meia entrada) e por aí vai. Faz parte da nossa cultura achar que a gente merece mais e o outro merece menos, mas ainda assim, não vemos isso como problema, dançamos conforme a música.

Esses pequenos hábitos e formas de lidar com a rotina, operam desde o universo micro ao macropolítico. Nosso conformismo e aceitação do contexto (“é assim mesmo” ou “sempre foi assim, sempre vai ser”), muitas vezes nos impede de criar um embate, de nos posicionar politicamente e assim, de poder mudar. A mudança pode começar de dentro para fora ou de fora para dentro, mas, para que ela se concretize de fato, deve atravessar os aspectos culturais da vida biopolítica.

As expectativas, exigências, dependências e ao mesmo tempo o desejo de autonomia em relação ao governo também precisam ser repensadas. Não podemos nos ausentar de algumas discussões ou esperar, jogando todas as responsabilidades nas mãos do Estado. Sabemos e estamos cansados de ouvir todos os problemas tanto de corrupção como do maior e mais elevado índice de impostos em cima de tudo que fazemos, compramos, comemos. Não é o momento de questionar como e onde esse ciclo começa, mas sim, interromper essa corrente. Para querer poder, cobrar e exigir, devemos começar nesse âmbito micro, no nosso entorno, nossa vida. Isso vale, não apenas para aspectos econômicos, como também na nossa relação com o lixo que produzimos, a forma como utilizamos nossos recursos, como nos locomovemos. O discurso e o pensamento devem existir enquanto ação.

Passar por uma crise nunca é fácil, toda mudança é difícil. A crise pode e deve ser vista como um lugar de potência, de possibilidade de reflexão e mudança. Tempo de abandonar o discurso niilista e corformado desse período e tentar enxergar esse campo de forças como uma possibilidade de criar novas estruturas. Isso é válido para os espaços e equipamentos culturais de qualquer natureza. Por mais que verbas, medidas e recursos sejam escassos, precisamos ser criativos. Os problemas, a instabilidade e a ausência de recursos devem servir de motor para mudanças na base, assim como para se pensar os próximos passos do cenário cultural.

Não podemos dar as costas para o esvaziamento das instituições ou museus de grande porte, responsáveis pela manutenção do nosso patrimônio. Talvez seja exatamente esse o momento de aproveitar essas estruturas que já existem para pensar novos modelos de gestão e curadoria, assim como resignificar a preservação, arquivamento, manutenção e invenção da nossa memória, história e patrimônio.

 

MATÉRIA ESCURA[4]

Por operar, também, através do imaterial, o indizível e com o inexistente, a arte e sua experiência muitas vezes não podem ser enquadradas, ou mesmo, quantificadas. Por mais difícil que seja identificar e mapear as mudanças, sua origem, seu tempo e percurso, sabemos que a arte, justamente pela ausência de finalidade, é também agente no engendramento desses processos. Mesmo que invísiveis e de difícil estudo, eles estão ali, existem como matéria escura. Como gestores, curadores e artistas, temos que trabalhar com todos os lados, com o todo. Por mais que operemos com agentes, espaços, políticas, público e recursos que já existem, não podemos deixar de lado o inexistente.

Sempre tivemos uma relutância no uso da palavra curadoria no contexto do Ateliê Aberto, já que grande parte do nosso trabalho estava no agenciamento de processos, encontros, ideias, lugares e pesquisas, experimentando, abrindo e criando espaço para o que está por vir, o que ainda não existe. Prefiro pensar que ao invés da inexistência de uma curadoria, nosso trabalho pode ser visto como uma curadoria do inexistente, trazendo não só uma dimensão teórica, histórica, investigativa e propositiva do ofício, mas também um aspecto afetivo, intuitivo, até mesmo místico. Muitas vezes, mais do que um conceito ou pesquisa, nossa atuação foi o fazer, permitindo, potencializando e agenciando encontros.

Esse livro, assim como o Ateliê Aberto, é mais um lugar de encontro que só existe a partir do outro, de quem lê. Com diferentes possibilidades de leitura, reflexões e ideias, ele foi pensado como um lugar de dissenso, sem acordo ou desfecho, uma conversa aberta. Através de artifícios, ferramentas e mecanismos que foram usados para se pensar e compor o nosso espaço ao longo da história – o nosso modo de fazer, pensar, conceber e produzir projetos – abrimos esse diálogo.

Pensar lugares, sejam físicos ou subjetivos, para que encontros e agenciamentos aconteçam, pode ser uma maneira de (des)organizar o campo de forças, intensificando o engendramento do dissenso. Existem outros lugares entre o público e o privado, o formal e o informal, o grande e o pequeno porte, o existente e o inexistente, “dependente” e “independente”, a esquerda e a direita, entre o que é dado e o que é meta. Às vezes, a postura mais radical é criar e ficar nesse entre, nessa encruzilhada, na terceira margem do rio. Seja lá, cá ou aqui no meio, que outros encontros, lugares e mundos sejam possíveis.

 

NOTAS DE RODAPÉ

[1]“Se existe uma conexão entre arte e política, ela deve ser colocada nos termos do dissenso, o próprio cerne do regime estético: obras de arte podem produzir efeitos de dissenso precisamente porque elas nem dão lições, nem têm um alvo.” RANCIÈRE, Jacques. Dissensus. On Politics and Aesthetics (Londres: Continuum, 2010).

[2]“Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.” ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias – A terceira margem do rio (Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001).

[3]“De certa forma, o medo é o filho de Deus, redimido na noite de sexta-feira. Ele não é belo, é zombado, amaldiçoado e renegado por todos. Mas não entenda mal, ele cuida de toda agonia mortal, ele intercede pela humanidade. Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce. Quando chegar a hora de fechar o livro, eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem.”GODARD, Jean-Luc. Je Vous Salue Sarajevo (1993) [transcrição narração em off]. vimeo.com/24772770

[4]“É uma parte do Universo que os astrônomos sabem que existe, mas ainda não sabem exatamente o que seja. É matéria, porque se consegue medir sua existência por meio da força gravitacional que ela exerce. E é escura, porque não emite nenhuma luz. Essa segunda propriedade é justamente o que dificulta seu estudo. Todas as observações de corpos no espaço são feitas a partir da luz ou de outro tipo de radiação eletromagnética emitida ou refletida pelos astros. Como a matéria escura não faz nenhuma dessas coisas, é “invisível”. Ainda assim, sabe-se que ela está lá.” ARAÚJO, Tarso. Edição 54 – Mundo Estranho. mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-e-materia-escura

 

 

*O texto “O lugar do dissenso” foi desenvolvido especificamente para o livro METADADOS do Ateliê

Aberto, publicado em março de 2016 através do Prêmio Espaços Independentes da Secretaria do

Estado de São Paulo – ProAc. Para conferir a versão online do livro, acesse os endereços abaixo:

issuu.com/atelieaberto/docs/meta

issuu.com/atelieaberto/docs/dados

 

CRÉDITO DA IMAGEM

Sem título

Leonilson

1989

Henrique Lukas atua como curador, gestor e artista.
Em julho de 2016 passa a integrar a equipe de curadoria da Pivô, como coordenador artístico dos projetos do espaço. Foi curador e gestor do Ateliê Aberto (Campinas/SP) durante os últimos quatro anos, e desde 2012, dirige a produtora Mar Vermelho, que presta serviços de vídeo e fotografia para diversos projetos, artistas e instituições, como o Instituto CPFL Cultura. Desde 2014, participa como performer e colaborador da Taanteatro – Teatro Coreográfico de Tensões. É formado em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).