COMO CORPO

PARTE 1

Sei que estou viva porque ainda gozo. Semana passada transei por WhatsApp. Molhei lençol, travesseiro, cama, chão. Um jato intenso acompanhado por outro e assim por diante. Ejaculei até ficar com sede. Já ele gozou na mão, segurou o gozo na palma sem deixar escapar uma só gota. Com cuidado, abriu os dedos e me mostrou. A partir daquele momento eu deixo de ser somente buceta. A câmera passou a enquadrar sua cara, como um retrato. Seu olhar estava para o meu e estranhamente passei a ter rosto. Me via dentro daquela retina emoldurada pela tela do Android, presa numa armação redonda dos anos 70. Ele não tirou os óculos. Será que tirou as meias? Ficamos nessa de se encarar por pouco tempo. Alívio. Quando desligamos, passei a existir nos rastros daquilo que não era mais meu. Um litro de mim derramado como uma garrafa bêbada que partiu ao chão. O cheiro do gozo é tão forte quanto o da espuma que transborda da tulipa. Sempre, depois, fico com vontade de mijar. Queria ter mijado ainda com ele ao celular, só para provar que aquilo não era xixi. A maioria dos boys não entendem o que é uma mulher ejaculando. Gozo litros mesmo sem ter todas as partes de mim. A boca seca, a perna bamba e uma fome de ontem ajudam a lembrar o corpo a se manter vivo. Comi, bebi, sentei. É uma luta para que a subjetividade loira oxigenada não se apodere dos meus pensamentos e coloque como meta de vida encontrar um príncipe encantado. Anos de televisão abriram um rombo no lado direito do meu cérebro e é lá que a loira oxigenada se esconde. Só mesmo os anos 90 para fazer com que meus cabelos pretos cacheados ficassem lisos e loiros. Foi nessa mesma época que aquele jovem playboy branco, bonito, bem sucedido se tornou presidente do Brasil, tudo muito coerente com a antena parabólica. Verde e amarelo. A troca do televisor preto e branco pelo colorido foi uma revolução. As pessoas ficaram mais brancas. Lá em casa trocamos a rua pelo sofá. Pausa, volta. Nasce uma espinha na ponta do meu nariz, espremo e sai um gado. Na frente do espelho, assisto ele correr goela a dentro, na certeza de que mais uma parte do mim está morrendo. Quanto mais espremo, mais gados saíam de lá. A multiplicação é rápida, efeito manada. Vale a pena ver de novo, Rei do Gado, Princesinha do Brasil.  – Nós também vamos ser invadidos por nós. Essas foram minhas últimas palavras, depois disso nunca mais falei uma só palavra. Pra que falar se no Tinder você pode simplesmente postar uma foto? A relação entre imagem e palavra se resume a uma só ação: match. A foto de perfil do garoto da semana passada o apresentava com uma barba mal feita, um gato no colo, óculos John Lennon e um livro. Aquela foto já dizia o necessário para não me arrepender de transar com ele. Do momento em que damos match, não é mais preciso conversar ou fingir interesse em sua pessoa. É só mandar uma foto do peitinho, receber uma da piroca e ligar a câmera. Caso o boy queira falar algo, a tática é dar um close na buceta ou no cu. Em menos de dois segundos ele não se importa se você é muda ou trilíngue. Sei que estou viva porque ainda gozo. Às vezes finjo gozar, essa é uma das consequências da subjetividade loira oxigenada. Masturbei, masturbei, masturbei, mas não gozei. A culpa não é sua, é minha. Não tem nada haver com você, sou eu. Até quando transo comigo mesma peço desculpas para o outro. A falta do corpo por inteiro me faz falta. Agora com mais força, A FALTA DO CORPO POR INTEIRO ME FAZ FALTA. Não chego a chorar, não é para tanto. O lado esquerdo do cérebro me lembra que tenho casa para viver, cama para dormir, comida para comer e família para ver tevê. Boa noite, boa noite, boa noite seis vezes por semana, porque domingo é fantástico! Rá, rá, rá. A mediocridade é também um dos sintomas. Meus dedos dos pés não existem mais. Um dia acordei e eles não estavam lá, ficou apenas uma fenda de 3 cm para o chinelo encaixar. Desconfio que foi a fada dos dedos dos pés, ela leva seus dedos e deixa uma Havaiana. A perda dos membros e dos órgãos acontece conforme as passagens da vida. Uma perda sintomática e generalizada. Não posso perder minha buceta. Fala bucetinha! Mostre seus dentes para o mundo, cuspa, jorre e afogue com seus fluídos todos aqueles que pouco a pouco te tiram o direito de estar em mim. É minha! É minha! A porra da buceta é minha! Então eu danço, rodo, pulo, abro as pernas e olho para conferir se ela ainda está lá. Quando fiz quinze anos, tentaram tirá-la de mim. Dizem que nessa idade a menina vira mocinha. Na casa da vizinha, a mocinha está grávida de cinco meses. Engravidou aos quatorze mas será mãe aos quinze porque é idade de mocinha. Já o mocinho de vinte e cinco anos não tem nada haver com isso e repete para quem quiser ouvir: – Ela queria, ela queria, ela queria. É tão velho e ainda não virou gente. Ela está grávida, ele fugido, eu vomito. A palavra aborto não existe, somente Deus e fé. Ou melhor, fé em Deus. Algumas mulheres, assim como eu, ainda tem suas bucetas. Todas as mulheres têm seus úteros sequestrados antes mesmo de nascerem. Eu, ela e a bebê de cinco meses na barriga da mocinha. Acaricio a minha teta, ela ainda está lá. Pressiono com os dedos os mamilos, puxo-os para frente o máximo que consigo e solto para vê-los balançarem. Repito a ação pelo menos três vezes. Dona das divinas tetas, derrama o leite bom na minha cara e o leite mau na cara dos caretas. Lembro que a Gal Costa posou para a Playboy, penso no que isso significa. Moral, tradição, punheta, trabalho, cafetinagem, gozo, dinheiro, gado, vaca. Acho que significa que todas as artistas são putas! São bruxas! Artistas mulheres são putas, bruxas e isso é divino! Viva a vaca! Morte ao rei do gado! No mundo existem mais gados do que humanos. Para cada cabeça de brasileiro, uma cabeça e alguns antipensamentos a mais de gado. Muuuuuuu faz o pastor balançando a bíblia na linguagem universal dos homens de bem. Depois do útero, o segundo órgão que tiraram de mim foi o rim. Tinha seis anos, um metro e oito de altura e trinta e um quilos. Uma vaquinha gordinha com bochechas rosadas e cabelos cacheados. Sempre antes das refeições mugíamos: manhã, tarde e noite. Para comer mais, eu mugia mais alto que o próprio pastor. MUUUUUUUU. Lá no templo só algumas crianças foram escolhidas. Eu fui uma delas, meu irmão não. Em casa todos ficaram muito orgulhosos de mim, cheguei até a ganhar um lacinho novo para a cabeça, cor de mel. Tiraram a minha roupa, me vestiram uma camisola estranha e me deitaram em uma cama mais estranha ainda. Depois disso eu não lembro o que aconteceu. Acordei com minha mãe mugindo ao pé da cama, enquanto segurava minha mão. Deste dia em diante não consegui mais comer como antes, brincar como antes, sorrir como antes. Meu irmão me contou que eu tinha comprado um pedacinho no céu com aquela parte que tiraram de mim. Semanas depois mamãe morreu, foi morar lá no céu. Papai chorou e teve que comprar um pedacinho na terra. Deste dia em diante não mugimos mais. Almoçávamos na frente da televisão: arroz, feijão, ovo, purê e ilariê. A Rainha dos baixinhos tinha uma nave que vinha lá do céu, lá onde eu tenho um terreno, ela era minha vizinha e eu deixava ela estacionar sua nave no meu jardim. Não podia falar isso para meu irmão que ele me batia. Uma vez ele me bateu tanto que perdi um dente. Fiquei roxa feito uma beterraba. Ele também queria um terreno no céu, queria ser loira e linda. Ele não podia. Meu irmão era um ano mais novo do que eu. Como tínhamos praticamente o mesmo tamanho, dividíamos o uniforme da escola e outras “roupinhas”, nome que dávamos às peças que compartilhávamos. Só que quando ele vestia saia ou vestido, acabava apanhando do papai. Algumas roupas eram proibidas para ele, outras eram proibidas para mim. Tínhamos que ter muito cuidado para não errar. Faz um tempo, transei com um boy que usava uma calcinha de renda vermelha bem fininha na parte de trás. Uma bundinha peluda dividida por um fio vermelho com uma bolinha de strass na ponta. Peguei uma cenoura bem grande, passei óleo e enfiei no meu cu. Gozei pensando no meu irmão. Depois a comi vendo televisão, como nos velhos tempos. Levantar da frente da televisão já não é tão fácil como naquela época. A cada dia que passa sinto que perco meus joelhos. Aliás, para que preciso deles se não rezo? No Tinder ninguém quer saber se você tem ou não joelhos, é uma das partes do corpo que passa batida nas fotos de perfil. Uma vez vi um boy que postou a imagem dos joelhos. Vai ver que esse era o único membro que ele tinha. Não posso dizer mais nada sobre o caso, não deu match. Já a barriga, esta sim é uma parte do corpo importantíssima. Algumas pessoas quererem perder a barriga. Ignorância pura. Quero que a minha fique comigo até o fim da vida. Se pelo menos eu pudesse vender meu pedacinho no céu, teria dinheiro para cuidar dela melhor. Estou deixando o cabelo crescer, ele já bate na cintura. Quando chegar na panturrilha, eu corto e vendo para quem puder pagar. É muito mais fácil para uma mulher entrar no mercado da beleza do que no mercado imobiliário. Além disso, os cabelos trazem um benefício eterno: mesmo depois de morta, eles continuam a crescer. Sei que estou viva porque ainda gozo. Os cabelos da buceta também crescem desenfreadamente. Algumas mulheres pagam para não tê-los, outras, assim como eu, os trocam por próteses sexuais. Uma buceta lisinha por um dildo, tal como consta na descrição do meu perfil. Compreendendo por próteses, tudo aquilo que prolonga e aumenta a capacidade de ação da minha mão, já que não tenho a mão esquerda. Fiquei só com a mão direita, que é a mão mais certa para vida. Pelo menos foi isso o que disseram quando tiraram a esquerda de mim. No início foi difícil, mas quando se fica noiva esse é o processo. O anel na mão esquerda a faz cair, é o preço que se paga. E junto da mão esquerda, foi também um pedaço do coração. Terminamos no dia que ele me comeu a força, com uma faca na minha goela. É minha! É minha! A porra da buceta é minha! Então esperei ele dormir e fugi com a roupa do corpo. Fui para a casa de papai, que vive sozinho com uma aposentadoria de fome. Papai tem todos os membros do seu corpo, um homem íntegro de se ver de fora. Já por dentro é vazio, vazio, vazio. Tem só mesmo o necessário para assistir tevê. Ele dorme, come e até mesmo mija sentado em frente a televisão. Basta colocar o pinto para fora da calça, mirar numa garrafinha e pronto. Depois ele fecha bem a garrafinha e joga pela janela, para não sujar a casa. Gosto muito dessa parte, mostra que ele tem respeito com meu trabalho doméstico. Aliás, não é trabalho porque não é remunerado, só é doméstico mesmo. No dia que completou um mês que retornei a casa de papai, apareceu uma espinha na minha bunda. Fiquei com medo de sair mais um rebanho de lá de dentro, não espremi. Em poucos dias aquilo virou um imenso curral. Não dava para sentar ou dormir de bruços, uma dor no íntimo da carne. Aguentei duas semanas, até que aceitei que havia perdido o território para o gado. Fizemos um acordo, ele ficava com a bunda e eu com o cu. E lá se foi mais uma parte de mim, fatiada como bife do mercadinho aqui da esquina. Papai me disse que quando se deixa um homem, se paga com a bunda, uma indenização legal dos danos morais da masculinidade. Dar a bunda e ficar com o cu foi um feito que agradeço a papai. Ele ficou com a tutela do meu cu, para que meu ex não o levasse. No dia seguinte, vendi meu anel de noivado e comprei um smartphone. Acordo todos os dias no máximo sete e meia da manhã, pulo da cama, passo o café, sento na privada e atualizo as notícias do Tinder. Boy vestindo camiseta do Corinthians e boné para trás dá match numa terça feira chuvosa, às sete e cinquenta e dois da manhã. Que comecem os serviços! Siri, siri, siririca! A gozada matinal tem o poder de manter o estado de graça ao longo do dia. Gosto de fazer sentada na privada para depois não ter que limpar. Bate, bate, bate e escorre tudo dentro do vaso. Seco com papel higiênico, dou descarga e lavo a mão direita. Na casa de papai tem um espelho no banheiro que evito ao máximo. Não sou uma pessoa muito bonita, é difícil não ter corpo inteiro. Papai diz que é para o meu próprio bem, para o bem das mulheres. Ele sempre dá o exemplo da minha garganta, de como me tornei uma pessoa melhor depois que parei de falar. Quando faço uma cara triste, ele faz com que aquela tristeza vá embora. Sentado na frente da televisão, ele me pede para pegar uma vassoura e me manda ficar de quatro. Fico de quatro ao lado da televisão, assim não atrapalho ele em seu programa. No intervalo, ele pega o cabo da vassoura e enfia no meu cu. Faz isso para eu não ficar triste, como se por gerar uma tristeza maior, aquela outra fosse embora. Um saber dos pais de meninas da minha família. Meu avô tinha esse saber, meu bisavô, meu tataravô e assim por diante, sabe? Como ele tem a tutela do meu cu, pouco se importa em enfiar na buceta. Um real comprometimento com a lei tutelar. Isso é algo que mudou na passagem das gerações. Uma vez papai disse que meu avô usava um rodo na frente e uma vassoura atrás para curar a tristeza da minha tia. Fico pensando se meu irmão vai levar esse saber familiar adiante, acredito que não. Faz mais de dez anos que não sei dele. A última vez que o vi, ele estava muito parecido comigo, só que mais bonito. Vestia as roupas proibidas, tinha deixado o cabelo crescer e se pintava com maquiagem. Papai brigou com ele, disse que ele não era mais seu filho. Deste dia em diante, meu irmão perdeu seu nome e também o olho esquerdo. Papai o arrancou para pagar a indenização dos danos morais do patriarcado. Não gosto de lembrar daquele dia, posso ficar triste e levar uma vassourada no cu. Sei que estou viva porque ainda gozo. As funções do dia a dia são masturbar, lavar, limpar, passar, arrumar, cozinhar e mais um monte de verbos terminados em ar. Pára, respira e recomeça tudo de novo. Quando estou muito cansada, fecho os olhos, lembro da Rainha dos baixinhos e rezo. Tudo que eu quiser, o cara lá de cima vai me dar, me dar toda coragem que puder, que não me falte forças pra lutar. Então eu abro Tinder e penso. O cara lá de cima vai me dar, o cara lá de cima vai me dar, o cara lá de cima vai me dar. E não é que ele deu? Match com o boy de perfil de quatro. A primeira coisa que faço é vestir minha cinta caralho, que troquei por pelos anais. Próteses por pelinhos, sou uma empreendedora! A câmera do celular foca no propósito. Com as duas mãos ele abre cada uma das nádegas, faz força como se estivesse evacuando e se abre para mim. Com minha prótese eu fodo aquela bundinha, mesmo que essa seja um travesseiro. Dentro da cinta um dildo, fora um caralho. Entro nele e vibro em mim. Dentro, fora, dentro, fora, dentro, dentro. Naquele momento sinto meu corpo por inteiro. Não entendo quando dizem “penso logo existo”, acho que foi um matemático quem disse isso, só pode ter sido. É tão horrível essa frase que me entristece só de lembrar que a humanidade tem para si a razão como modo de vida. Não há dúvidas da minha capacidade de pensar, nem por isso digo que existo. A capacidade de pensar está tirando a capacidade de sentir. Há um tempo atrás, queimei a mão direita enquanto cozinhava, a única que tenho. Preparava um salteado de verduras quando o que era verde foi escurecendo a ponto de virar carvão. Tentei pegar com a mão algumas folhas, na tentativa de salvá-las. Me queimei, me queimei muito. Não tinha volta aquela verdura, as partes do meu corpo e tampouco o amanhã após o fogo. O verde e minha única mão estavam queimados. Doeu tanto que não chorei, só tive raiva. O ruim da raiva é que paralisa, não as ideias, o sentir. Passei dias sem conseguir pegar qualquer objeto para me penetrar, nem mesmo consegui ligar o celular. Quando não se sente ou sente muita dor, não se sente mais. Como se fossemos de-existindo. Cheguei a desistir de comer, de gozar e de viver. O tempo do corpo é o tempo do gozo. Em francês é a pequena morte, para mim é a única possibilidade de vida. Mas minha mão ainda estava em mim, era só uma questão de tempo para ela voltar. Dizem que se a humanidade acabar hoje, em vinte anos São Paulo vira uma floresta. Acredito nisso, que um dia a humanidade vai acabar. Até lá, acompanho o planeta melancolia se aproximar pouco a pouco. Uma noite, sem tanta poluição no ar, consegui ver uma carreata de luzes cruzando o céu. Não eram estrelas, era uma fileira de luzes que cruzavam o céu na mesma direção. Dias depois fui saber que eram os satélite da internet 5g. Talvez agora a internet pare de cair aqui em casa. Eram tantos satélites juntos que não duvido que, em pouco tempo, o celular se transforme em um chip instalado em nossas cabeças. Daí, quem sabe, a falta que meu corpo faz não fará mais falta, seremos todes cabeças chipadas sem corpos. Nos dias que se passaram com a mão queimada, eu adoeci. Não consegui me masturbar, não consegui fazer os trabalhos domésticos, não consegui levantar da cama. Papai ficou muito bravo comigo, mas nada fez, nem sequer me deu uma vassourada no cu. Como ele mesmo dizia: – Não vale a pena, morre logo garota. Papai estava certo, não valia a pena, nunca valeu e não seria amanhã que passaria a valer. Mas com os dias, a queimadura da mão foi melhorando e meu grelho voltou a piscar. Bzzz, bzzz, bzzz, o celular vibrava. Bzzz, bzzz, bzzz, meu grelho vibrava junto. Logo que comprei o Android, as companhias telefônicas me ligavam incessantemente, oferecendo planos e pacotes ilimitados. Eu passava o dia com o celular dentro da calcinha, deixando ele no modo vibrar. Bzz, bzzz, bzzz. Foi assim que comecei a me transformar em uma c-borghi. Aquele aparelho era extensão do meu corpo, era parte de mim, era a parte do corpo que me foi negada desde dentro da barriga da mamãe. Antes de mamãe morrer, ela fez uma festa de aniversário para mim. Se não me engano, foi no aniversário de seis anos de idade, pouco antes de tirarem meu rim. Ela fez um bolo rosa, encheu a casa de balões rosas e me comprou uma roupa rosinha: sapatilha, meia-calça, saia, blusa e tiara. No dia da festa, tomei um banho demorado, sequei o cabelo, passei perfume e vesti a “roupinha” que dividia com meu irmão. Quando tinha acabado de me arrumar, mamãe me pegou pelo braço e voltou comigo para o quarto. Me fez vestir aquela roupa rosinha que tinha comprado para mim. Eu fiquei tão triste que até esqueci que era meu aniversário, que havia uma festa esperando por mim. Aquela roupa rosinha era ridícula. Eu implorei para ela deixar eu usar “roupinha”, que dividia com meu irmão. A cada lágrima que escorria em meu rosto, mais forte mamãe apertava meu braço e ameaçava chamar papai. Deste dia em diante, vesti a roupa rosa e nunca mais a tirei. Minha buceta é rosa e eu a amo. Não é sobre ter buceta ou pinto, é sobre a buceta performar como ela quer. Então a música toca uma vez mais, atravessa meu corpo. É minha, é minha, a porra da buceta é minha!

PARTE 2

Acabou. O que ficou se chama saudades. Aconteceu no momento em que ela voltou para casa e não o encontrou. O armário vazio, a parede pelada, o vento frio do congelador, um silêncio estrondoso, os gatos, o cão e ela deitada no chão. Foram 5 dias no chão, chão, chão. A princípio ela não conseguia falar seu nome. Seguiu em silêncio por semanas, até que numa terça-feira à tarde suas sílabas saíram: sau da des. Escutando sua própria voz, ela voltou para o chão, chão, chão. Junto da voz chegou a fantasia. E de D em D, de saudades e de fantasia, ela retornou a imaginar. Olhando o horizonte, voltou a certeza de que o céu toca o chão. O céu, céu, céu. A chuva desaba das nuvens e também evapora. Corpo água se faz rio entre suas pernas e sobre sua face: chorar, gozar. Pela lente do espelho ela reflete uma uva passa que seca gota por gota. O peso deixado após as sessões de terapia é o mesmo peso deixado após o sexo. O copo cheio, o corpo vazio. A primeira vez que ela transou com outro foi parar no céu. Foram horas e horas de beijos, lambidas, dedadas, penetrações. Incontáveis as vezes em que ela chegou ao paraíso. Seu corpo tremeu da cutícula dos pés às pontas duplas do cabelo. Uma bola de energia se formou entre suas mãos, como dedos de serpentes elétricas. Foi a primeira vez que sentiu, materializou e visualizou aquilo que a ciência chama de elétrons. Ela teve medo de morrer, ao passo que nunca se sentiu tão viva. O suor, os fluidos, a baba se amalgamaram entre os fios de algodão do lençol. A cama se tornou lago, com um peixe nadando em seu corpo rio. A princípio ela não entendia como era possível combinar lágrimas e jatos de ejaculação, saudades e fantasia. Quando compreendeu, foi na cachoeira de Boiçucanga, que em tupi-guarani significa cobra da cabeça grande. A água estava gelada e o sol escondido detrás da montanha, mas mesmo assim ela se banhou. Ao entrar no rio, foi automaticamente levada para debaixo da cachoeira. Sem grandes esforços, conseguiu permanecer sob a queda respirando sem engolir uma só gota. Seus pés tocaram a rocha, enquanto suas mãos sustentaram seu dorso. Mirações de cobras caindo sobre ela eram tão reais como o frio que sentia. Sua respiração ficou ofegante, lembrando o mesmo ritmo daquela transa de elétrons. Não demorou muito ela começou a chorar, a gozar. Ficou quase meia hora na cachoeira, até perceber que estava dentro da cobra. O veneno tomou seu corpo, a fez tremer, morrer e viver. Ela era um corpo rio numa cachoeira cobra, era também saudades e fantasia. Então, apareceu a onça. Ela sentiu o felino se aproximar em silêncio e com sede. A onça ficou rondando-a, até ir matar a sede em outro rio. Sem se dar conta, seus lábios abriram e sopraram a palavra fantasia. Quanto maior a fantasia, menores as saudades. É uma distração da mente. Mente, mente, mente. Foram três dias sonhando de olhos abertos e fechados. Ela imaginava a pele pintada se refrescando em seu corpo rio, se deleitando em seus seios leite, escorregando dentro de seu ventre cachoeira. Ela é água doce e quando sai do mar gosta de chupar seus cabelos marinados. O sal guardado nos fios é como aperitivo. Água de coco, água do mar, água viva. Dizem que quando se é queimada por uma água viva, o mais prudente a ser feito é xixi sobre a queimadura. Lembranças daquele dia nas pedras de Diamantina, em que após uma semana com covid ela mijou sobre o corpo daquele que por anos foi seu oceano. Não se beijaram, sua urina apenas deslizou sobre o corpo dele, até seu pau esguichar. Quando ele acabou com ela, seus olhos estavam secos como seu coração. Enquanto ela desabava rio, ele não deixava cair sequer uma lágrima. Como se toda a sua água estivesse ido para ela, fazendo dele um corpo deserto. Seco, seco, seco. Pode ser o equilíbrio da vida; o mar virar sertão. A última vez que o corpo rio encontrou o mar deserto, ele nem sequer olhou para ela. A partir de então, ela não rio em sua presença. Há tanto para se dizer, para se trocar, para se amar. Às vezes o choro toma conta do corpo rio, que incha até transbordar para dentro de si. Nestes dias as lágrimas caem dos olhos aos pulmões. Quase não se respira ar. São dias longos, que duram o tempo de uma semana. Dias que trazem lembranças e sau da des, daquele jeito junto separado de estar. Quando é assim, o dia é cinza quadrado concreto. Ela ainda tem vontade de fingir que nada aconteceu, de que ela é sua, de que ele é seu. De rimar, de se amar. De passar as horas como se fossem anos, de acreditar que poderia ter sido para sempre. Foi assim uma vez. Daqui a pouco ele fará 37 anos. Ela pensa no aniversário, no tempo que passa agora sem ver seus cabelos caírem, sua barba embranquecer. De um lado ela, do outro coração. Alguns momentos são piores. No final das contas, o gosto ruim demora para sair da boca. Corpo rio sangra, corpo rio vermelho. A cada dia das mães, maior a certeza de que nunca ninguém habitará seu ventre. A cólica chega mensalmente para lembrar que aquele corpo rio foi feito para sofrer, jorrar, sangrar. Não há paz, não dá pés, não existe a palavra pãos. Sereibá levou corpo rio para boiar entre seus braços. No mangue, ela sentiu a presença do mar. Aquela água salgada ardeu seus olhos. Ao mesmo tempo em que as raízes flutuantes de Sereibá a abraçaram, o sal, o sol rasgam seu peito. Ela se nutriu do mangue, mas também se exauriu da vida. Perto de sua casa, na época da procriação, os guaiamuns saem do mangue e cruzam a estrada em direção ao mar. Muitos morrem atropelados, enquanto outros são pegos pelos homens e fervidos ainda vivos. A existência por vezes é cruel. Ela repete, só para não deixar dúvidas, soletrando letra por letra: a c a b o u. Por fim chegou a lua cheia e o eclipse em escorpião. Nesta noite ela olhou com profundeza para as águas do passado e decidiu mudar o rumo de seu leito. Ela não poderia ser mais o Nilo, responsável por irrigar, nutrir e dar existência àquele imenso deserto. Aceitou que as saudades permaneceriam em seu corpo, assim como o peixe, a cobra, a onça, o guaiamum, as raízes de Sereibá e todos os seres que nela habitam. Aceitou que por mais que alguns momentos fossem de calmaria, a doçura é um mito. Aceitou não ser açude, não ter sua vida projetada. Aceitou seguir o fluxo. Ela corpo rio sobe e desce correntezas, sem medo de ser feliz.

* A leitura performática online do texto COMO CORPO – parte 1, pela atriz Beatriz Barros, aconteceu no dia 15 de novembro de 2020, dia da Proclamação da República, às 19h, sendo transmitida pelo website de conteúdo adulto Cam4. Para acessar o perfil de Beatriz Barros (ComoCorpo) no Cam4, clique aquiCOMO CORPO – parte 1 é um texto de ficção inédito, escrito entre julho e outubro de 2020, publicado (até então) somente na mostra do acervo HIPOCAMPO #8, em outubro de 2020. COMO CORPO – parte 2 foi escrito em maio de 2022 e é inédito. O desenho que acompanha COMO CORPO – parte 2 é de Sophia Pinheiro, feito em nanquim, da série animal (2020).