Adeus aos heróis

“El tiempo presente comeca a da razon a los crimenes

y esto para todo tu pueblo es un traguardo importante,

por vuestra memoria. El olvido no existe…

La verdades y la justicia son lo cual se lucha…

y empeza solo ahora.”

“Hay momento en que se radiografiza el pasado

y junto el presente.

Esto es vuestro momento creo.”

Roberta Garieri[1]

A história da humanidade, essa aprendemos a escrevê-la a partir dos grandes feitos personificados em uma única pessoa. As narrativas que transformaram o mundo, ainda que tenham existido sob derramamento do sangue de muitos inocentes, convergem para o aplauso e exaltação de uma só pessoa que figura como herói, livre de mancha, erro ou injustiça. Nossa história queda de maneira muito plácida e limpa em nossos livros, como se toda trajetória humana na Terra pudesse ser lida como uma fábula que traz apaziguamento para alma, porque apesar do enredo obscuro e cheio de tragédias nos deparamos sempre diante de um final feliz.

Era essa a sensação que eu tinha, quando criança aprendi sobre nosso “descobridor” que deixou Portugal à procura da Índia, uma terra de beleza na qual se poderia encontrar especiarias, num ato de coragem e desejo por aventura lançou-se ao Grande Mar e chegou ao Novo Mundo. Desde muito cedo, ensinaram-me a admirar Pedro Álvares Cabral como o fundador do Brasil. Em nenhum momento, foi-me permitido duvidar, senão sob a ameaça de me tornar uma má estudante: como poderia alguém “descobrir” um novo mundo que já era habitado por outras pessoas? Os índios já não moravam aqui? Foi assim que entre a ameaça e meu anseio por uma história que se assemelhasse melhor à verdade aprendi a conviver com essa fábula que me contavam, como história oficial, sobre o Brasil. Embora latejasse dentro de mim uma verdade inelutável: seus primeiros habitantes foram assassinados impiedosamente em nome da construção de uma nação “civilizada”.

A história da humanidade contada sob o marco dos grandes feitos só faria sentido se de fato todas as invenções, sobretudo, tecnológicas, estivessem à disposição de todo e qualquer ser humano. Insistir no modo historicista-linear, de contar sobre os acontecimentos humanos, guarda em si mesmo um modelo de hierarquias que são como fraturas – se nos pensarmos como uma grande comunidade global. Porque tais hierarquias só podem existir se baseadas em preconceitos, ficções de superioridade de uma cultura sobre a outra. A história da humanidade estaria melhor representada se passássemos a contá-la como A História da Violência. Nessa história caberia melhor os diversos personagens, anônimos ou não, nas narrativas que construíram o mundo como o percebemos hoje. Sem heróis, seríamos capazes de compreender, sem disfarces, os impulsos humanos que anseiam pelo poder e que para desfrutá-lo são capazes de suplantar seus próprios pares.


Jamais poderia supor que me seria tão difícil falar sobre a ditadura. Pelo fato de nunca a ter vivenciado na própria pele, acreditava estar a salvo de suas violências. Mas não. A ditadura mesmo depois de destituída como regime governamental permanece como uma sombra sobre todos, sem exceção. A sensação que tenho no momento é de alguém que sangra. Alguém que sente uma dor mas não sabe ao certo onde localizá-la e que por isso mesmo não sabe que medicina usar. Assim também são os sintomas da ditadura dentro do corpo de uma sociedade por muito tempo transtornada por suas violências. Viver sobre uma ditadura, inevitavelmente, nos leva a aprender a conviver com a cultura do medo, com a qual aprende-se a se desfazer pouco a pouco da capacidade de duvidar. A ditadura cultiva a apatia. É a instauração do completo estado de anestesia. E nesse sentido, esvai-se toda a possibilidade de saber-se humano em sua inteireza. É assim que a ditadura sobrevive como sombra sobre um país que teve que aprender a existir como uma fantasmagoria de si mesmo.

Uma história de violência não é fácil de ser contada. Porque a partir dela não há a possibilidade de transparecer um lado sublime, honrado, digno. Tudo é vil, mesquinho, tacanho, motivo de vergonha. Seja para quem a impõe, seja quem dela é vítima. Não à toa, passados 30 anos após a queda do último governo militar no Brasil, ainda não somos capazes de falar abertamente sobre o assunto. São poucos os que conseguem conversar com certa tranquilidade sobre aqueles anos obscuros. A grande maioria dos brasileiros segue sem paz. Ou porque foram vítimas diretas de torturas e desaparecimentos de seus familiares. Ou porque foram autores ou cúmplices dessa engrenagem do terror que subjugou o país por 21 anos. Ou ainda, quem escapa desse binômio segue calado por covardia ou perdeu o apreço pela verdade. Diante da violência não existe ética que possa balizar equilibradamente as intenções humanas. O medo acaba sendo o denominador comum de uma equação estúpida que torna tudo igual a zero no momento que intentamos descobrir a verdade por detrás das constantes históricas.


“Filha, escuta essa música. Veja que bonita. Presta atenção na letra.” Era assim que meu pai replicava comigo seus momentos de professor da língua portuguesa num colégio católico quando era mais jovem. Eu ainda era um pouco mais do que uma criança quando aprendi a ouvir e apreciar a Música Popular Brasileira e a me apaixonar pela sintaxe complexa que há na nossa língua-mãe. Foi ouvindo música com meu pai que fui descobrindo fragmentos de um momento sombrio da história do país e de minha própria família. Foi ouvindo Gilberto Gil, Caetano Veloso, Ivan Lins, Milton Nascimento e tantos outros que aprendi a me encantar com a música e a poesia. Mas foi com Chico Buarque(1), Belchior(2), Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré(3) que despertei minha alma para as histórias de um Brasil não tão heroico. Sob a melodia desses compositores, eu ia desvendando, em suas letras, as fragilidades de um país que se debatia com sua própria história, uma realidade de certa tranquilidade que lhe escapava pelas mãos.

Mesmo hoje, eu sei pouca coisa do que aconteceu naquele momento de terror. Alguns fatos vão surgindo pouco a pouco nos momentos de melancolia do meu pai que até hoje segue ouvindo seus compositores favoritos aos domingos em sua varanda em Recife. Nunca entendi, por exemplo, como minha família teria sobrevivido. Será que sofreram alguma tortura? Me pergunto. Ao que tudo indica, a família de meu pai seria um alvo perfeito para a ditadura. A maioria dos irmãos, homens e mulheres, eram estudantes e em maior e menor grau engajados na luta pelos direitos humanos e o pensamento de esquerda. Meu pai dedicou sua juventude à música, à poesia a ao teatro. Militou junto ao movimento estudantil do Recife. Na época, ainda estudante de Direito, ele e seu irmão mais novo, hoje desembargador do estado de Pernambuco, eram alguns dos que ajudavam a libertar presos políticos com ajuda de advogados militantes e o arcebispo de Olinda e Recife Dom Hélder Câmara, mundialmente conhecido por sua resistência ao regime militar.

Tal assunto claramente se trata de uma cicatriz de pele ainda muito sensível que a qualquer momento volta a sangrar. Por isso é com muito cuidado que sigo tentando coletar fatos que me ofereçam melhores imagens e que me ajudem a compor esse imenso quebra-cabeças de um passado não tão distante e ainda sem possibilidade de ser algo claro e apaziguado em nossa memória.


Com quase 9 anos trabalhando como crítica e pesquisadora em arte, tive a chance de reaprender a olhar a história brasileira com um pouco mais de abertura. Ainda incapaz de remontar nossa história porque a verdade, ainda, continua velada sob forma das tantas fábulas contadas pela ditadura. O excesso de propagandas do regime autoritário aliado um discurso de segurança familiar e avanço econômico do país por muitos anos veiculadas na época, o silêncio em torno das torturas e desaparecimentos, e o sistema educacional arruinado ainda reverberam como uma fumaça negra que impede ter uma relação honesta com os acontecimentos daquele momento.

Além disso, é preciso ponderar que especialmente esse pedaço de história do país não é possível ser contado a partir de heróis. Porque mesmo esses que perderam suas vidas com a convicção de que serviam a um fim mais nobre carregaram consigo também algum sangue inocente. Contraditoriamente, dentro do movimento de esquerda, a violência encontrava lugar não só contra “inimigos da ditadura” mas também juízos sumários aplicados com morte ceifaram a vida de muitos camaradas de acordo com seus graus de comprometimento com o que se achava ser o puro pensamento de esquerda.

É provável que ainda não seja essa geração, mas a próxima, que consiga estabelecer parâmetros que permitam uma análise crítica real de todos os acontecimentos do governo militar que, sem menor sombra de dúvida, tornou obscura nossa história e nos abdicou de uma vida política saudável. Os primeiros passos começam a ser dados com os documentos entregues no final do ano passado pela Comissão da Verdade, instituída, no governo Dilma, há dois anos atrás. Outros passos a serem dados são a análise crítica da produção artística daquele momento que não só resistiam ao autoritarismo governamental como também revelavam nuances de uma sociedade frágil.

Penso que a arte, sobretudo em momentos sombrios como o de uma ditadura, carrega uma potência de armazenamento de conhecimentos capazes de clarificar situações históricas que insistem em criar suas fábulas heroicas para justificar seus derramamentos de sangue (seja de um lado ou de outro). Ainda que pressionada por discursos hegemônicos, a arte parece, em algumas situações, escapar dessas armadilhas na reinvenção de sua forma salvaguardando o conteúdo para gerações vindouras. Ainda que esses conteúdos sejam uma denúncia clara de que a humanidade não vai nada bem.


(1)Vai passar, composição de Chico Buarque e Francis Hime.

Vai passar
Nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo
Da velha cidade
Essa noite vai
Se arrepiar
Ao lembrar
Que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais

Num tempo
Página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações

Seus filhos
Erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal
Tinham direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia
Que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval (Vai passar)

Palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
E os pigmeus do bulevar Meu Deus, vem olhar Vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade Até o dia clarear

Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral vai passar
Ai, que vida boa, olerê
Ai, que vida boa, olará
O estandarte do sanatório geral
Vai passar

Link: http://www.vagalume.com.br/chico-buarque/vai-passar.html#ixzz3OS96FrYD

(2)Alucinação, composição de Belchior.

Eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos, sonhos matinais
Eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Nem nessas coisas do oriente, romances astrais
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia,
E meu delírio é a experiência com coisas reais
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais
Cravos, espinhas no rosto, Rock, Hot Dog, “play it cool, Baby”
Doze Jovens Coloridos, dois Policiais
Cumprindo o seu (maldito) duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Cumprindo o seu (maldito) duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais
Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais
Um preto, um pobre, um estudante, uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas, pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite, revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho, meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas dessas capitais
A violência da noite, o movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre que canta e requebra, é demais
Cravos, espinhas no rosto, Rock, Hot Dog, “play it cool, Baby”
Doze Jovens Coloridos, dois Policiais
Cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Cumprindo o seu (maldito)duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida
Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria,
Em nenhuma fantasia, nem no algo mais
Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas me interessa mais
Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais

Link: http://www.vagalume.com.br/belchior/alucinacao.html#ixzz3OS9n87Up

(3)Canção da Despedida, composição de Geraldo Azevedo e Geraldo Vandré.

Já vou embora, mas sei que vou voltar
Amor não chora, se eu volto é pra ficar
Amor não chora, que a hora é de deixar
O amor de agora, pra sempre ele ficar
Eu quis ficar aqui, mas não podia
O meu caminho a ti, não conduzia
Um rei mal coroado,
Não queria
O amor em seu reinado
Pois sabia
Não ia ser amado
Amor não chora, eu volto um dia
O rei velho e cansado já morria
Perdido em seu reinado
Sem Maria
Quando eu me despedia
No meu canto lhe dizia

Link: http://www.vagalume.com.br/geraldo-vandre/cancao-da-despedida.html#ixzz3OS6PTMuR

NOTA

[1]O texto faz parte da dissertação de mestrado da pesquisadora italiana Roberta Garieri. Título: Il NABA (Nuova Accademia di Belle Arti – Milano) em “Conversazioni” páginas 110 a 114, 2015.

*O texto original Adeus aos heróis é parte da dissertação de mestrado da pesquisadora Roberta Garieri, de 2015. Outras duas versões foram publicadas na edição inaugural do Jornal de Borda (2015), organizado por Fernanda Grigolin, e na revista italiana Hot Potatoes (2018). A versão que integra o acervo HIPOCAMPO, publicada aqui e também na mostra do acervo #3 em março de 2018, é a mesma publicada no Jornal de Borda. A imagem da capa desta publicação é de 2014, de autoria de Barnabé Di Kartola.

Ana Luisa Lima (1978), nasceu em Recife-PE, é crítica de arte, escritora e pesquisadora independente com foco em literatura e artes visuais – imagem e narrativa. Faz parte do Conselho Curatorial do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães - MAMAM. Editora da revista Tatuí (2006-2015), participou de debates, promoveu residências editoriais, ministrou laboratórios de escrita em crítica de arte e de análise do discurso em vários estados brasileiros. Cocuradora do projeto ‘Poemas aos homens do nosso tempo – Hilda Hilst em diálogo’, Programa Rede Nacional Funarte 9ª edição, 2013. Criadora da Cigarra Editora com selos para livros de arte e literatura. Autora do livro ’16’39” a extinção do reino deste mundo’, São Paulo-SP, 2015. No audiovisual, lançou seu primeiro curtametragem ‘Zona Habitável’ (13′, Nova Lima – MG, Brasil, 2015).