Berlim 1936 – Rio de Janeiro 2016
Desde Berlim (1936), a estética de Leni Riefenstahl, representada pela combinação entre um corpo “belo” e a massa “feliz”, permeia a coreografia dos Jogos Olímpicos. Às vezes mais, como em Moscou e Berlim, às vezes menos, como nos jogos “serenos” de Munique em 1972[1]. Nem sequer a introdução de cenários da cultura pop a partir dos anos 80 foi capaz de mudar esse quadro tão influenciado pela propaganda. A comercialização globalizada acrescentou-lhe apenas outra dimensão, que dificilmente passa despercebida: a do patrocinador.
Passados 80 anos, o problema muda de nome. Nas Olimpíadas do Rio 2016, não por acaso, a Agência Brasileira de Inteligência realiza uma campanha de prevenção ao terrorismo anunciando que pessoas suspeitas “utilizam roupas, mochilas e bolsas destoantes das circunstâncias e do clima; agem de forma estranha e demonstram intenso nervosismo”. Enquanto isso, a polícia militar se antecipa tachando qualquer jovem negro e pobre como menor infrator[2]. Uma vez mais Riefenstahl reavive, com parâmetros visuais que dão forma ao indivíduo “mal”, perigoso, nocivo a sociedade etc…
Para além do poder da imagem, a perseguição étnica (na maioria das vezes vinculada as classes sociais) é um assunto que está longe de ser abolido. Se dentro de uma mesma cultura é quase que impossível a compreensão do outro, quem dirá com aquela que o difere. Se os anéis entrelaçados da bandeira olímpica representam a paz e a amizade entre os povos, este significado se restringe apenas ao campo das ideias. O que um dia foi justificado para promover a união de raças dos cinco continentes, hoje perdura sem efeito. O que temos é uma esperança vestida com belas imagens em harmonia ao entusiasmo das competições.
Palmas 2015 – Rio de Janeiro 2016
A fim de banir (ou por que não escancarar?) o espírito de Riefenstahl, ainda que apenas no gesto, a exposição “Jogos do Sul” busca resgatar a atenção sobre a autodeterminação do esporte e seus momentos sublimes. O desafio, então, é tentar resgatar a poética do esporte com a consciência do cenário em que esta se encontra. Para isso, um grupo de artistas e pesquisadores assistiram aos I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas – IJPMI(Palmas, 2015)[3] e vivenciaram os reflexos de mais um megaevento esportivo no Brasil, entre a Copa 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Uma experiência que aponta, não raramente, que este tipo de acontecimento está mais ligado à retórica da política, ao marketing da cidade e à especulação imobiliária, do que a uma interação saudável entre indivíduo e sociedade.
Pois tanto a cidade de Palmas como do Rio de Janeiro se mostraram inaptas para receber eventos desta grandeza, vide a falta de estrutura, planejamento e comprometimento dos envolvidos. Além do que, se durante os IJMPI os indígenas revogavam pelo fim da PEC 215 (que transfere ao legislativo o poder de demarcação de terras indígenas, em outras palavras, a bancada ruralista), nas Olimpíadas em 2016 os moradores da Vila Autódromo foram retirados a força de suas casas para dar lugar ao que hoje se chama Vila Olímpica. Ainda que pareçam dois problemas distintos, no fundo, ambos tocam o mesmo ponto: a carência de direito daqueles que sempre foram explorados.
Contudo, mesmo com consciência do abuso de poder sobre as chamadas “minorias étnicas” e a precarização estrutural oferecida tanto aos atletas como ao público, persistisse o fervor daqueles que assistiram ou assistirão aos jogos. Tratam-se de incoerências latentes que fazem com que o show continue.
Movido por essas inquietações e experiências, “Jogos do Sul” propõe refletir sobre o impacto social e a real necessidade de mais um megaevento esportivo de caráter internacional. Observar de perto como um episódio desse porte modifica a cidade e como isso interfere diretamente em seu cotidiano.
Uma é uma exposição de arte contemporânea que vai em contraponto ao espetáculo olímpico, ao mesmo tempo em que tenta resgatar as antigas virtudes do olival sagrado de Olímpia, que dirigia congregação entre povos em uma disputa salutar. Pois se bem sabemos da capacidade do esporte olímpico em produzir grandes narrativas e cenas sublimes, cujos melhores momentos superam o dia a dia e são capazes de adentrar zonas de utopia, sabemos da sua competência em distorcer significados. Esse efeito positivo e catártico, no entanto, não consegue ocultar seu grande e persistente dilema. Olimpíadas para quê e para quem?
Paula Borghi
Agosto de 2016
NOTAS DE RODAPÉ
[1] De uma Alemanha que tentava mostrar ao mundo uma nova nação democrática pós-nazismo. Em uma Olimpíada que sofre um atentado terrorista ao comitê esportivo israelenses.
[2] VIDE MATÉRIA FOLHA: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/09/1687195-ao-menos-dez-menores-sao-recolhidos-em-blitz-no-rio-de-janeiro.shtml
[3] VIDE MATÉRIA FOLHA: http://www1.folha.uol.com.br/bbc/2015/10/1694663-jogos-mundiais-indigenas-enfrentam-boicote-em-protesto-contra-governo.shtml
CRÉDITOS DAS IMAGENS
Registro da exposição “Jogos do Sul” |
Imagem em destaque | Romy Pocztaruk (da série Olympia)
Paula Borghi (São Paulo, 1986) mestranda em Artes Visuais na linha de pesquisa de História e Crítica de Arte pelo PPGAV/UFRJ. Foi curadora adjunta da 11# Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2018), curadora convidada do Centro Cultural Hellerau no Projeto Brasil (Dresden, Alemanha, 2016), assistente curatorial de Ibis Habascal na 12# Bienal de La Havana (Cuba, 2015) e curadora da Residência Artística do Red Bull Station (São Paulo, 20013-2015). Foi co-idealizadora do espaço independente Saracura (Rio de Janeiro, 2016-2018) e idealizadora da biblioteca itinerante de publicações de artistas latinos Projecto MULTIPLO (2011-2017), premiado pelo Rumos Itaú Cultural em 2015-2016. Nos anos de 2015 e 2016 trabalhou com o Instituto Goethe no projeto Jogos do Sul, que teve como objeto de pesquisa os I Jogos Mundiais Indígenas, Palmas. Ao longo de sua trajetória vem atuando com processos curatorias voltados a residências artísticas e exercícios de práticas democráticas.