VITRAIS

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a língua vem bruta a poesia remenda a razão pára e olha—————————————————————————

 

BEACH GLASS

 

1. Contínuos

Tirei as tuas roupas do armário. Carreguei-as pela casa como se carregasse o teu corpo -como se houvesse o teu corpo.

Voce foi brutalmente podado de mim.

Os teus galhos agora se decompoem na terra que recém me acolhe, fortalecem a minha vida. O teu ser paira e me faz acreditar em alma. Intocável pai nosso jardim floresce, é lindo. As árvores que voce quis também. As árvores que eu quero estão sendo plantadas. Nosso ritmo é lento como elas.

                  Caminhada noturna no cais deserto

De noite os barcos. Um passeio pelo cais, eu e minha infancia, eu e a
lembrança infantil deste cais na beira da estrada, deste cais esquecido
até agora.

Eu e todos os cais: pontes entre a terra firme e o movimento. Pouso dos
barcos errantes, abrigo dos que vivem ao ritmo do vento, do sol e das
tempestades.

Minha infancia com meus pais, o amor, as broncas, o mar mais vivo,
inteiro: o mar que envolve o corpo e submerge-o na aventura.

Nadava como um peixe embaixo d´água, os olhos abertos.Tirava a
cabeça, respirava e mergulhava de novo. O Sol garantia o mundo lá fora.
Ficava tanto tempo embaixo d´água que os dedos enrugavam. As costas
ardiam. De noite no quarto, as luzes já apagadas, minha mãe passava
gel de Aloe Vera em mim.

*

vim busquei sem querer deixei o peso do acaso gravitar em torno de mim

Descobri na estrada a minha mitologia
Encontrei-me com a memória
Confundi o presente até perdê-lo.

*

Guardava o xixi. Esperando o mar. Um cais. Entorno do cais o mar,
finalmente. Na calma do mar o xixi liberado cava um buraco: alívio.
Ondinhas concêntricas. É de noite, poucas almas num restaurante
distante e vento. Solidão.

O acaso foi que me trouxe aqui. Hoje, de noite: nesta marina onde eu
vinha, criança, embarcar no veleiro do meu pai.

*

É hora de parar de andar em círculos-poço, ascender, seguir até o fim
desta estrada: Paraty e seu filho Uirá.

***

                                                                                Presença

O mar é sedento e às vezes me mete medo. Olho pra ele: rajada de luz. Brincadeira de sol e mar: idas-e-vindas, pausa, fluxo.

*

Teve o dia -o momento em que desliguei o telefone. O teu pai morreu. Desci do carro e saí. Arrastando-me por entre os rochedos, entrando em grutas para chorar, praia trás praia. O céu, o mar e a terra me eram completamente
estranhos. Todo o planeta transformava-se em vertigem: imagem. Olhava o céu subitamente descontrolado, as nuvens e o mar em conluio acelerado e hostil.

*

Eu prensenciava a transsubstanciação da vida.  Era necessário deitar na grama para ver o luar pulsando no mato orvalhado: sentir a plenitude, a benção do meu pai.
Tive certeza de que a cidade concreta não só as nascentes de água, mas o tempo como um todo. Foi necessário deixá-la e mudar para o campo. Entender o funcionamento das plantas.

***

                                                          Praia

A tarde recupera algo de antes do desastre.
Uma criança nua me olha, seu corpo branco esculpido na luz. Garrafa
cheia d´água com gás: vitral psicodélico. O seu olhar me lança um
desafio. O menino bebe a garrafa toda até o fim. A confiança das
crianças, sua perseverança. O menino expira aliviado e desvia o olhar
para o mar.

***

                                                                               Beach Glass

Todos os dias eu ia à praia. Juntava beach glass num pote de vidro. O tédio na Bretanha. O acalanto do meu companheiro. As ruínas medievais. O vinho. O mar. E sobretudo o beach glass: pequenos pedaços de vidro colorido que o oceano cuidadosamente polia, para depois cuspir na areia. Eu os recolhia sistematicamente. A coleção logo tornou-se uma atividade cotidiana nas semanas que passamos em Batz-sur-mer.

*

O telefonema. A partida. O voo. O velório. O enterro. Ficaram pra trás o pote e suas tres semanas de beach glass colecionados: pequeno vitral.

***

Colagem: mundo exterior. Sfinx do desejo: desenho de criança.

***

Mesmo de olhos abertos vejo o palácio de cartas de cristal.
Corta-me o agudíssimo apito do silencio

***

Silêncio feito da ausência de cheiros, implosão estática, luminescencia, pausa.

***

A alma da terra, a alma do pai
A alma? longe: aqui.
O cão é o velho (mordiscamos nossas patas)

***

                                                                                      Caixa

Para que a beleza seja boa: cultivar o amor. Seguir as instruções do tempo. Minhas raízes dentro da caixa.  Raizes que crescem num ritmo invisível, mas que um dia hão de ser gordas.

Florescerei flores raiadas (festa de azuis, rosas, verdes, roxos e lanranjas). Com vigor me apoiarei na caixa  -dentro dela hei de crescer cipós.

 

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2. Andança
    Pegar o tempo, diluí-lo, esparramá-lo no corpo. Passear o passeio, sair e perder-se do lado de dentro, como um caderno cheio de areia.

 

Ele é até onde alcanço: eu e meu ínfimo corpo.

***

Ele me envolve como um trem, uma máquina de lavar roupa, um pedaço de bagunça. Silencioso como um fio de nylon.

***

Rosto disfarçando-se à partir de seu princípio para fumar a lua no campo aberto. Na terra o corpo deixa o peso limitadíssimo à gravidade. Desfaz o orvalho.

***

                          Paisagem

É no mistério que brota o desejo. Ele tem cabelos: cipós.

A chuva veio confirmar a vida. Os brotos rebentam. No dia seguinte todo o visível: mato.

Um boi ancestral rumina a paisagem. Ele está calmo, também ele entende a planície. Tudo respira a calma. A chuva vai e volta.

Eternos ciclos de chuva refletidos no espelho atrás da cama. Estivemos viajando, quiçá ainda estamos. Vivemos contidos em malas. Soltos. A água esconde-se nos grotões.

Um rio corta a paisagem: navalha de luz.

***

                          Geografia

Não. Não estão em meus olhos: caracóis. Pedras brancas, pinheiros e tufos de ervas. A restinga da montanha ao sol: do lado de fora o mar. Aceita o ouro queimando sua orla. Do lado de dentro a lagoa sereníssimo espelho. Nela o céu se admira e os montes se perdem. O diáfano sutiliza azuis, cinzas, violetas, laranjas, todas as cores em tons pastéis.

Acabaram as baterias. A Power source desapareceu desligando celulares e trens e fotografias.

Os erros os mudos problemas familiares latejam em surdina – já não desviam. Meu caminho é fácil pois não tenho objetivo. Sigo o ar, a terra, a água e as plantas. Reitero a pergunta muda que faço à vida, mas já não anseio resposta.

A estrada sobe e pronto. Com sorte quem sabe uma reserva natural e a vista do mundo.

***

                          Caramujo

Tento pisotear as palavras enquanto me esmagam seguro nelas e não afundo.

Passa o tempo, elas sentam comigo, me acalmam.

Nesta mesa na beira da estrada no meio dos camioneiros
Vemos o trânsito: caminhões transportam bois, camas, galinhas, carros e refrigerantes.

Camioneiros são marinheiros.
Polícia é polícia em qualquer lugar: até a caneta pode vestir farda, mas a estrada, mas as rotas marítimas (cruza atravessa segue)

O homem viaja só (veludo arroxa patuá)

Paisagem.

E o homem viaja só. Chega com apetite dobrado -a carne suave e os outros, que importa, seguem outros.

Deus intermedia os homens.  Deus é vazio e silencioso: ele está entre

O corpo é o nosso caramujo: pernoite.

***

                          Chúchú

1. Eu e este senhor que assobia enquanto dirige um carro pequeno e velho: deixamos a cidade adentrando a noite, o frio e a área rural. Sim, ele cresceu aqui. Aqui é bom né? Imagina você querer um chúchú (ou uma folha de couve)
e ter que pagar? Estrelas, lua crescente, presságio. Gestação da dôr.

2. Um certo estar mais sensível, no nó dos sonhos, traumas, rupturas, finais e a lua, o sol, as flôres e os bichos, esta melodia que o senhor assobia, tão despreocupada quanto os seus cabelos brancos. A pureza deste instante, a vontade de apreendêlo, conseguir chegar do âmago à palavra, e isto não impede à rádio de nos agradar enquanto desprende melodias adolescentes.

***

         Vôo

Fosse vôo
Seria rasante
Mato batendo na cara agarrando nos dentes

Mato azedo, bom às papilas.
Erva daninha entre os dentes.

Mastigação.

***

Sobrevôo

O mundo é pozinho de vidro imitando cocaïna
É negócio
Lontra e Jacaré
Uma briga cega
Um pôr-do-sol com pelos na frente da lente
O ritmo dos legumes
Dos poços de petróleo
Um sobrevôo (proposta)
Recusa

***

Tá aí: o mundo feito uma torta mal-feita, seca, áspera, salgada, massuda,
queimada.

***

Noite

Silenciar em meio à rostos estranhos, leilão de Agro-negócio (Commodity-lucro). Porque estou sozinho?

Quem foi que me deixou aqui?

Acordo aos poucos, ainda não sei onde estou. Homens gigantes com cabeça de lampada, persecução. Será que a mania depressiva está aqui também, de mãos dadas comigo, fazendo carinho na minha nuca?

Será que a noite virá enfim?

O sol desce atrás do morro, transformando a matéria banhuda em matéria sutil. Suavisamos porque a espera do fim. Da Noite.

Quando ela chega: que alívio. A noite enaltece a forma. Se há Lua: majestade. Se não há: cuidado.

O cachorro agradece o sono do sol, recompensa-o com a sua vigília.

A água jorra incessantemente.

*

Já sabemos que o planeta Terra é uma grande panela de pressão. O céu é a tampa da nossa panela.

Chegamos. Quarenta-e-sete graus de temperatura em Helsinki. Sessenta-e-nove no Rio. As pessoas trancadas em casa. Uma tarde de exposição solar: Cancer.

E o mundo será uma grande sopa de peixe e gente.

***

5. Transtornar.

6. A esperança

7. Ela está aqui. Olha pra ela.

8. Quais são as dimensões? pode ser um campo verde iluminado por um sol etéreo? O silencio?

9. Busco a beleza em São Paulo. Suspeito tê-la encontrado no céu, num grupo de nuvens carregadas de chuva, pequenas e numerosas, variando em tonalidade.

***

Paisagem japonesa

Estamos na alta e clara floresta alemã.  É verão, a luz atravessa as sombras das árvores.

O mar bate bravio.

O jovem caminha nu. A camera apodera-se do seu corpo. O mar bate.

De trás das arvores, o jovem vê siluetas se aproximando. São varios corpos que vestem sedas e luvas negras, seus rostos pintados de negro.

A corda aperta a pele do jovem: linha que seguimos com cuidado. Sozinho amarrado no tronco, visto de longe parece São Sebastião. O mar bravio.

A faca entra em seu ventre, da pele perfurada jorra em arco uma linha de matéria vermelho-escura.

Slow-motion: o arco de sangue a curva de um rio.

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3. Violencia

Violencia

Violencia é fogo
Violencia é ferro
Violencia é osso
Violencia gosta é de festa
Bebe o xixi de mil homens
Jibóia até o meio-dia

***

Deitada

Violencia dorme
Deitada na rede ela sonha que voa
É de noite, o asfalto húmido reflete as luzes da cidade
Há uma mulher deitada no meio da rua, enroscada em cobras
Uma jaguatirica parece que a devora
Violencia desce
Ela fuma um cigarro na entrada do hotel aparece um leão
A mulher sumiu agora é Violencia deitada e os bichos se aproximando
Duas jibóias enroscam-se sensualmente uma abraça suas pernas, a outra o tronco

***

Bela e secreta

Violencia dorme
Na rede
A brisa salgada
Balança
Parece que esqueceu seus sapatos n´algum lugar
Areia
Desejo

Ela está em festa

Sua faca vai cortar a pança dos convidados, de noite
Violencia mal pode esperar

Ninhos de corpos
Línguas de lámina
Beijos

Violencia é doce
Ouça a promessa no escuro:
Revele-a.

Ao som de tão bela e secreta voz
Dançamos
As luzes piscam
Sem parar
Claro Escuro Claro Escuro
Por fim calmos, amamos

*

Toco o teu membro viril
O espelho cai

***

Futuros bebes

Violencia espanta-se com a beleza do menino andrógino.Ela quer plasmar-se em sua feminidade. Acaricia a meia-calça justa sob o vestido e deseja que a bunda apalpada seja a de uma menina.

O ambiente derrete-se tanto é o tesão meninos se beijam simulam o sexo como animais dançam as meninas dançam também uma delas não tem porque ficar nem sair da cidade Violencia constata de uma distancia dizeres anarquistas
guirlandas de luzes vermelhas o transe é coletivo atravessa as horas é o tempo com maravilhosa vaselina e muitos sorriem todos ou quase encontram alguém (como se já o conhecessem) o papo é franco e profundo é o tempo com
maravilhosa vaselina um menino lindo penetra outro menino lindo atrás de um caminhão no meio da rua o que se entrega aceita vibra e goza o outro ainda come aproveita o fim despenetra saca a camisinha e jorra para a rua como uma oferenda o semem do jovem lindo o semem de um phallus ideal abençoa a cidade maravilhosa.

Violencia já sabe conjugar os verbos se foder ela gosta esquecer-se e criar a noite como criança neon o futuro chegou quer falar com ela tonight Violencia por fim entende-se sistemáticamente ainda que esqueça a peça-chave o futuro talvez adentrando o mistério das entranhas -semem dos efebos- futuros bebes tornam-se visíveis no coração do asfalto.

***

A menina se esconde
A menina procura
Se perde na estante onde guarda as palavras
Dependura-se
Olha pra baixo
Mais embaixo do mundo

O jardim de luzes
Feixes raios pisca apaga acende brinca
A praia
Vaga sozinha na farofa

*

Perdida ela chora
a beira a praia a estante onde guarda as palavras
Suas lágrimas caem séculos
Rebenta o feijão no ponto zero do espaço
No nó da geometria
Mais embaixo do mundo

*

A menina se chama Violencia
Violencia cansada ainda força a vinda da primavera
Força a primavera
Forçando o corpo tensiona
Trava
Cansa

Então ela comete um erro
Perdedora
Menina

Um homem percebe
A multidão que empana seus domingos na areia
A menina perdida
A barraquinha azul das crianças perdidas

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Antonio Sobral cresceu no Rio de Janeiro, frequentou a EAV Parque Lage e foi assistente da artista Adriana Varejão. Estudou Cinema na faculdade Paris 1 em Paris. Realizou exposições individuais (galeria Dconcept, São Paulo…) e coletivas (Dumbo Arts Center, Nova Iorque…). Morou em Berlim onde realizou curadoria independente no Künstleratelier Pony Royal e editou publicações, tendo participado de feiras como a Printed Matter. Seu trabalho foi publicado entre outros na revista O Amarello (São Paulo). Integra coleções como a Archiv für Künstlerbücher (Munique). É coordenador da DEEP editora e do Programa de residências São João localizado nas montanhas do Rio de Janeiro, onde vive atualmente.