A expressão “ecologia da linguagem” pode ser encontrada contemporaneamente na obra de dois autores singulares, um brasileiro e outro italiano.
O escritor e crítico literário italiano Giulio Ferroni (Roma, 1943), em seu livro de 2011 Scritture a perdere: La letteratura negli anni zero (algo como “Escritas a perder de vista: a literatura nos anos 2000), explica que a “ecologia da linguagem” se relaciona com outras formas de ações ecológicas, a começar pela própria ecologia material de base:
“Juntamente com uma ecologia radical do ambiente físico precisamos cada vez mais de uma ecologia da comunicação, na qualidade de ecologia da mente, que liberte nossas mentes dos resíduos infinitos que nos cercam e assediam a todo o momento com uma gama variada de manipulações que bem poucos conseguem resistir. E é cada vez mais necessária uma ecologia da linguagem, ecologia do livro e da literatura, capaz de trabalhar distinções na imensa acumulação de material livresco produzido.”
“Hoje nós testemunhamos o paradoxo de uma literatura que se multiplica e retrocede simultaneamente, assediada e sitiada pelo império dos meios de comunicação e do vazio desta comunicação, a partir da degradação da linguagem e da vida civil” (e “civil” no sentido de cidadão cívico, pessoa que convive e se relaciona com outras pessoas na cidade, ou seja, como todos nós).
Já o poeta paulistano Roberto Piva (1937-2010), desde seu livro Ciclones, de 1997, relaciona “ecologia da linguagem” com sexo e provocação – conforme um trecho de apresentação na orelha do livro, que diz:
“Ecologia da linguagem: os poetas brasileiros têm que deixar de ser broxas para serem bruxos”.
Para entender a provocação, é preciso voltar um pouco no tempo, quando Piva publicou revista Chiclete com Banana, em sua coluna “Sindicato da Natureza”, o pequeno texto chamado “Intelectual brasileiro”:
Intelectual brasileiro entra em partido político pra lavar chão. pra ser Devoto. Pasolini entrou em partido político pra criticar, pra esculhambar. os poetas deixaram de ser bruxos pra serem broxas. fantasmas-eunucos deste teatro de Sombras que é a sociedade Industrial, bibelôs de consumo devidamente etiquetados & vacinados contra a Raiva. a nossa viagem xamânica começa agora: para as praias desertas & florestas do mundo, rumo ao centro da Terra cidade lúcida & quente. (Ilha Comprida, 1990)
Ciclones (1997) é o primeiro livro de Roberto Piva de poesia xamânica, que é como o poeta intitula sua escrita após o livro Quizumba (1983), e que inclui, além de Ciclones, seu último livro Estranhos Sinais de Saturno, de 2008 (embora o poeta tenha publicado poemas “xamânicos” em periódicos esparsos anteriormente).
Qualquer leitor da poesia de Piva sabe que há todo momento o sexo e a provocação estão presentes, mas “ecologia da linguagem” só na poesia xamânica, a última que compôs. Parece até que a última poesia Piva estava dialogando com o próprio Ferroni, que disse também: “Subtrair, em vez de acumular, redescobrir a paixão e a beleza essencial. Escrever menos, escrever melhor.”
Em meu livro Nojo (Editora Urutau, 2016), lançado recentemente, tentei seguir a pegada “ecológica” de uma poesia essencial. Apresento aqui os 2 poemas finais da obra, como forma de homenagear novamente Roberto Piva e Giulio Ferroni, dois grandes mestres, pra mim, da literatura que insiste em acreditar no futuro trazendo junto consigo as experiências e autores de um passado que não morre. Os 2 poemas estão no capítulo “Nojo tornado arte”, e dizem mais sobre “ecologia da linguagem” do que da enojante sensação de morte que paira na vida e na arte do presente. Quem quiser saber de que nojo falo, precisa ler o livro todo (que pode ser adquirido no site da Editora Urutau). Abaixo, “NADA” e “Gladiador”, os dois últimos poemas de Nojo, também porque toda verdadeira ecologia, material, literária, mental ou qualquer outra que seja, começa pela ideia de fim.
NA DA
“ ”
Mallarmé
Sou o Piva da natureza
não na natureza
escrevo poemas para minhas três cachorras castradas
todas as novidades se foram
faz chuva ou faz sol
as estações & o amor
se misturaram
mais do que poderiam se reconhecer
acredito na poesia após a morte
deitado na terra
escuto de olhos fechados sua boca me comendo
Gladiador (de frente para Giorgio de Chirico)
Eu disse não para seus corpos
neguei seus modelos mais clássicos pra me sentir jovem e forte
pois estou só na arena
e sinto daqui o cheiro pesado de vitória ou
Eu digo não para seus nus e membros
renego lenda fato elmo e a beleza dos cabelos
essa batalha não tem pés mas todo o resto
olho prum lado boca pra outro de quem é este flanco?
de repente sem fôlego e soco ancas aço com aço a lança o sono a morte não
eu quero de volta a máscara
a tinta fresca
o quanto for preciso acordar outro sem sonhos no mármore amorfo de nós e tudo e todos mas não Eu disse disse não pra esta obra
(ecologia da palavra Ferroni e Saviano)
eu disse não pra esta obra como não poder mais com a lança agora
enterrada revertendo o fluxo da veia não machuca não dá tempo a dor é luz o cheiro de novo e sempre o cheiro Giorgio Giorgio amore ódio oh Dio
o sangue se transforma como óleo
sinto seu suor
todo o peso de sua sombra em mim
sinto seus olhos
seu sorriso
e expiro
sim
Beso
Beso (Marcelo Antonio Milaré Veronese) é Doutor (2015) e Mestre (2009) em Teoria e História Literária pelo IEL-UNICAMP (com especialização em La Sapienza Università di Roma), com estudos sobre a poesia de Roberto Piva. Faz parte de dois coletivos poéticos de São Paulo: Cooperifa e Sarau do Binho. Publicou três livros de poesia: Juventude Supersônica (2008, Do Autor), Almas Elétricas (2010, Editacuja Editora) e Nojo (2016, Editora Urutau).