– Vai levar tudo isso?
Disse o carroceiro mancando, segurando uma lamparina para noites sem lua, antes de arrastar as malas para cima da carroça.
Olhei incerto para ele, para as malas, separei as duas, cheias de medalhas e coleiras enquanto rumávamos para o sul, para o fogo.
– Essas ficam contigo. Eu as dou de presente.
– O que tem aí? Não vou ficar com tralhas dos outros. Já é peso demais me arrastar por essas paragens, carregando esse burro velho como confessor e testemunha da minha desgraça.
– Só tem honrarias e algumas medalhas.
Mirando seco para trás, com o semblante ainda teso, remexeu uma das malas.
– É… , deve dar algum dinheiro. Mas não está incluso no valor que vai me pagar.
– Não está…
– … mas essas varas de pesca me seriam bem úteis, até porque, para onde vai, pode ter de tudo, menos pescado.
Voltou com um olho só para trás, e com o outro olho na estrada, pois o cavalo resmungava muito ao atravessar essa área brejosa.
– Não são varas de pesca, são traves de bambu para uma barraca, para passar os dias mais frios.
– E onde ela está?
– Ela é este meu manto que visto.
– Para onde vai não precisa temer o frio meu pobre andarilho. Tema a noite, pois no sol do meio dia o que queima é do lado de fora, mas a noite o fogo é interno.
– Não temo mais nada.
– Então porque carrega tanto peso?
– Estou me perguntando isso também.
– Se quer enfrentar essa jornada meu rapaz? Deixe tudo.
– Só levo algumas verdades escritas, alias, eles servem de esteio para minha barraca.
– É meu pobre rapaz, as vezes tomamos nossas decisões sem termos a consciência de nossa própria cegueira. Certa vez deixei um outro rapaz para estes lados das montanhas, mas ele só trazia cinzas.
A carroça atracou em área aberta. Já amanhecia.
Desci. Deixei mais alguns utensílios.
– Leve tudo! Não vou ficar com nada seu! E não leve nada! Nem esta conversa!
De longe ainda segui com os olhos, antes de partir, o carroceiro que voltava para cidade sem olhar para trás. Resmungava e cuspia, incentivando o cavalo a prosseguir mais rápido.
Juntei as malas e outros pertences e deixei ali, partindo para o meu exílio, arrastando o que ainda não era dado a mim e por mim, o consentimento de deixar.
* Um apóstata decide se desligar de tudo e vagar o deserto em busca de novas paragens. Durante o começo desse peregrinar, ato exploratório, o andarilho é atormentado por vozes que o perseguem e que emanam dos livros que ele insiste em arrastar. Sua busca incessante pela vacância que liberta é a mesma sabedoria que o faz pesado, impedindo o caminhar, pelas sentenças que insiste em carregar. A deriva de seus pés sobre este mar seco amarelado é casco roto de navio atracado.
Texto escrito em 2019, como desdobramento do vídeo O Peso da Terra que faz parte da exposição O Peso da Terra a ser inaugurada no dia 12/04/19, às 19h, no Museu da Cidade – MuCi – Fundição Lidgerwood. A exposição reúne uma seleção de obras, nas mais diferentes linguagens, dos últimos dez anos de produção dentro das artes visuais, incluindo alguns trabalhos inéditos.
Alexandre Silveira: O Peso da Terra
Abertura: 12 de Abril de 2019, sexta-feira às 19h
Visitação: de 12 de Abril 30 de maio de 2019
De terça a sexta, das 14h ás 20h; sábado, das 10h às 14h
Museu da Cidade- MuCi (Fundição Lidgerwood)
Avenida Andrade Neves, 33 – Centro – Tel.: (19)3231-3387 – Campinas-SP
** A imagem da chamada é um still do vídeo “O Peso da Terra”, de Alexandre Silveira.
Alexandre Silveira, São Roque SP, 1979, vive e trabalha em Campinas SP. Graduado em Arquitetura e Urbanismo, desde 2010 trabalha como artista visual. Em 2016 participou dos festivais da Galeria Trapiche em São Luís do Maranhão e da Galeria Elétrica em Belém do Pará, e do Salão de Arte de Rio Claro. Em 2015 participou do Festival PERFORMANCE do SESC Campinas, da Trienal de Artes do SESC Sorocaba, sendo convidado para uma residência artística no espaço ChãoSLZ em São Luís do Maranhão. Em 2014 foi premiado no Salão de Artes de Vinhedo e no Salão Contemporâneo de Araras além de participar do 41º Salão de Arte Contemporânea de Santo André.