O tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem.
O tempo respondeu ao tempo,
que o tempo tem tanto tempo,
quanto tempo o tempo tem.
Parlenda do folclore da língua portuguesa
O tempo é um conceito primitivo, portanto adquirido por vivência. É também um grande mistério que ronda a humanidade desde sempre, tema de debates entre cientistas e pensadorxs de diversas áreas do conhecimento, inclusive da arte. Na ciência, a aceitação de um conceito primitivo o torna real. E assim vivemos com o tempo.
Cotidianamente, na vivência, o tempo pode ser visto basicamente de duas formas: como espaço, extensão, oportunidade, liberdade; ou como limite, fronteira, inconveniência, controle. É o mesmo caso do copo meio cheio ou meio vazio. Independentemente da profundidade do entendimento e da percepção que cada umx tenha do tempo, o ser humano do mundo moderno parece encontrar dificuldades, ou falta de clareza, sobre como viver o tempo.
É preciso escolher o que fazer ao longo dos anos de uma vida, do mês de férias, no fim de semana, no sábado à noite, naquelas horas que talvez te sobrem todos os dias. No caso de mães e pais, quando há escolha, é preciso definir quanto tempo será vivido com os filhos, de que tamanho é a presença parental. Afinal, tudo indica que, para formar saudáveis cidadãxs, no sentido holístico do termo, é preciso vida compartilhada e muito afeto, muitas vezes traduzido na forma de atenção e, logo, de tempo. Por fim, é obrigação de todo ser humano reservar algum tempo para entender como reduzir o impacto ambiental de sua vida enquanto breve integrante do grande corpo, casa ou sistema Terra.
Apesar de dispormos todxs de 24 horas a cada dia, são muitas as formas de vive-lo ou, nos termos do capitalismo neoliberal, de consumi-lo. A qualidade da relação que cada umx mantém com o tempo, é luta e mérito individual. Organizando o tempo milimetricamente ou não, cada umx tem um ritmo, uma cadência, que rege a vida: há quem goste de passar os dias correndo, numa sobreposição de planos e anseios; há quem precise de doses intermitentes de ócio ou de breaks para respirar, ou fumar um cigarro; há quem goste de fazer tudo em seu devido tempo, com tranquilidade, uma coisa de cada vez, todas em uma grande e única fila; há xs que fazem de um jeito mas queriam fazer de outro.
No auge da distopia contemporânea, que culminou com a pandemia do Covid-19, como produto do momento de crise aguda, foram reveladas muitas das camadas de privilégios que cada umx acumula. O isolamento social, que impõe uma diversidade de restrições relacionadas à gestão do tempo, deixou de ser percebido como uma obrigação dx cidadãx bem intencionadx, para claramente ser mais um lugar de privilégio. Privilégio este que nem todx privilegiadx percebeu, claro. Para tanto, seria preciso perceber melhor x outrx.
Há xs que não sabem o que fazer com o tempo que transborda, por serem idosxs, aposentadxs, crianças ou adolescentes; porque mantiveram seus empregos mas estão trabalhando menos; ou simplesmente porque não precisam trabalhar para satisfazer suas necessidades (as básicas ou todas elas).
Há quem já estava trabalhando informalmente ou perdeu seu emprego, ficando sem ter o que fazer com o tempo e também sem ter o que comer. Algumas(guns) nesta situação, encontraram energia para reiventarem-se dentro dos protocolos, outrxs não.
Há aquelxs que não puderam abandonar seus postos de trabalho, profissionais da área da saúde, da produção e comércio de alimentos e produtos de higiene, do transporte, dentre outros. Por isso, mantiveram o tempo bem preenchido, correndo mais riscos de contaminação (quiçá de morte) do que xs demais, com a missão de conseguir mais tempo (ou seria mais vida?) para suas/seus pacientes.
Há as mães e pais que mantiveram seus empregos e precisaram passar por um verdadeiro processo de transmutação em polvo, imersxs num cotidiano de consumo total das energias disponíveis e, claro, do tempo.
Há ainda outras mães ou pais que ficaram desempregadxs, que dedicam todo seu tempo a encontrar maneiras de sobreviver e manter aquelxs que estão sob seus cuidados, segurxs e vivxs. Desespero.
E claro, quem não tem o privilégio de ficar o tempo todo em casa com as contas pagas, que precisa pegar o transporte público para trabalhar e colocar comida na mesa, não vai se preocupar em pegar o parque ou a praia cheia. Né?
Perceber as camadas de privilégios, sejam eles parcos ou abundantes, e estar prontx para assumi-los, demanda trabalho (e tempo, claro) e é parte importante do processo de cura pelo qual todxs nós, enquanto sociedade contemporânea, precisamos passar ao longo das próximas décadas. Não se sabe se o sistema (natural, social e econômico) aguenta mais um século dentro desta lógica que está operando. Mas por que estamos passando por tudo isso mesmo? Será que temos gente o suficiente tentando entender isso?
Apesar dos indivíduos que ocupam posições de tomada de decisão (ou que as influenciam) dentro da sociedade – como xs ditxs “políticxs” da administração pública, xs donxs de grandes empresas, xs maiores acionistas de corporações, trilhardárixs, bilionárixs e milionárixs em geral – serem xs principais responsáveis pelo que está acontecendo hoje no mundo, nos devendo respostas e propostas, a responsabilidade é compartilhada por todxs. Não há um ser especial sobre a face da Terra com o privilégio desta irresponsabilidade.
E como há muito trabalho pela frente, o maior trabalho do mundo, quem sabe não é hora de pegarmos na mão daquelxs que decidem, com firmeza, e elevarmos o sentido vigente de comunidade. Afinal, é tempo de eleições municipais. Para quem está com as contas pagas, pode ser uma oportunidade para embarcar naquele trabalho comunitário. Para quem está sentadx sobre uma pilha de dinheiro, este é certamente o momento de entender que uma sociedade só prospera quando sua riqueza é dividida de forma justa. É mesmo possível ou aceitável que alguns trabalhos valham tanto mais que outros? Ninguém nasceu iluminadx porque nasceu ricx, ou ficou ricx porque é iluminadx.
Para seguirmos vivos e sãos, enquanto humanidade, é preciso energia (ou trabalho), intenção para a comunidade e muito, muito tempo. E tempo é privilégio. E tempo é vida. E tempo é memória.
Pegamos impulso nesta breve reflexão e começamos os trabalhos do HIPOCAMPO #8, que chega recheadíssimo! Primeiramente, damos as boas vindas às(aos) novxs colaboradorxs que já integram esta edição: Alvaro Seixas [Rio de Janeiro], Jeisiekê de Lundu [Salvador/BA], Larissa Ibúmi [São João Del Rei/MG], Luiza Prado [São Luiz do Paraitinga/SP] e Tiago Rivaldo [Rio de Janeiro].
O HIPOCAMPO #8 também traz contribuições de Alexandre Silveira [Campinas/SP], Ali do Espírito Santo [Porto Alegre/RS], Desali [Belo Horizonte/MG], Irma Brown [Recife/PE], Lucila Vilela [Florianópolis/SC], Maíra Freitas [Campinas/SP], Marco Paulo Rolla [Belo Horizonte/MG], Mariela Cantú [Argentina], Paula Borghi [Terra], Ricardo Basbaum [Rio de Janeiro] e William Galdino [Rio de Janeiro]. Eu também integro esta edição como autora, na Seção: A cena de arte auto-organizada. Vamos lá!
Tiago Rivaldo abre o HIPOCAMPO #8 com os vídeos Via de mãos dadas n°. 1 (2008) e Via de mãos dadas n°. 2 (2010), registros de experimentos performáticos realizados pelo artista em colaboração com parceiros. Ambos são alegorias de típicas relações humanas: terrenos onde são levados à cabo processos eternos de negociação e disputa, na busca pelo equilíbrio e a paridade. Para existirem juntxs, umx precisa sentir, entender e aceitar x outrx, e ceder.
Em Disjunção, obra produzida durante a pandemia do Covid-19 para a convocatória Metro y medio de distancia, da galeria KIOSKO (Santa Cruz de la Sierra/Bolívia), Alexandre Silveira apropria-se de metros de medição usados na construção civil para conceber um objeto de arte e propor a reflexão em torno do distanciamento social, da solidão e do auto-conhecimento. Medindo 1,50 metro, o trabalho traz em seu corpo, ao invés de números, um pequeno texto, formado por uma série de neologismos construídos a partir da junção de palavras já existentes.
No texto A performance vivida na vida é o tempo presente, o artista Marco Paulo Rolla traz uma compilação de reflexões, pensamentos e sentimentos manifestados durante o mês de abril de 2020, período em que se manteve recluso por conta da pandemia do Covid-19. A abordagem do artista parte de seu templo – seu corpo e mente performáticos – e segue acompanhada de seu olhar crítico para a lógica capitalista neoliberal que vem regendo o mundo nas últimas décadas.
Para além da criação de obras de arte, a prática artística de Ricardo Basbaum envolve, como ele mesmo já definiu, uma série de “textos quase críticos”. Mas não se trata de crítica de arte, nem tampouco do Ricardo Basbaum crítico de arte. Em Cica & sede de crítica, texto escrito e publicado em 1999, o artista aborda, a partir de sua própria experiência, justamente o desconforto que, como uma nuvem densa, paira sobre este gênero literário primo fraco, cuja importância e eficiência é fortemente questionada já há décadas.
The art world wants to give you a big hug!, de Alvaro Seixas, reúne 10 desenhos, produzidos entre 2016 e 2019, que apresentam a visão crítica e irônica do artista sobre o sistema da arte e os modos de operação de seus principais circuitos, institucional e comercial, expressada através de seu humor um tanto ácido e abrasado. Seus desenhos emprestam características das charges e cartuns, tais como o teor crítico e o emprego de elementos gráficos de comunicação verbal e não verbal.
Marco Paulo Rolla volta para o HIPOCAMPO #8 com Bancarrotas, performance que critica o quadro socioeconômico hierárquico no Brasil, o poder do dinheiro e o comportamento repugnante que políticos e endinheirados manifestam em relação aos demais cidadãos. A performance aconteceu uma única vez, no evento Noite Branca (2012), em Belo Horizonte/MG. Seu vídeo-registro, publicado aqui, é inédito.
Carlos Lamarca foi um dos líderes da luta armada contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. Concebido em 2019, Lamarca, videoarte de Desali, apropria-se de cenas de filmes em VHS – em especial do Lamarca (1994), dirigido por Sérgio Rezende – e de imagens da internet retratando a ocasião em que o Bozo levou uma facada enquanto fazia campanha eleitoral. A edição de imagem e som é frenética, de efeito ao mesmo tempo hipnótico e perturbador.
Em Papangu Político ou Chateada, performance/intervenção urbana de Irma Brown em colaboração com Thassia Cavalcanti, corpos livres transitam por centros urbanos, interagindo com transeuntes, autoridades, monumentos e propagandas políticas. Nesta edição, Irma Brown traz registros em fotografia e vídeo da Papangu Político em Brasília (2012), Recife (2012) e Porto/Portugal (2013). Papangu Político deu origem ao Porno Revolution Papangu, movimento de ativismo absurdo que usa a sedução como arma para destruir o patriarcado.
COMO CORPO, texto inédito da escritora e editora Paula Borghi, produzido entre julho e outubro de 2020, traz as experiências, memórias, pensamentos e sentimentos de uma personagem fictícia, expressadas em uma rica e intensa narrativa em primeira pessoa. Neste monólogo interior, a personagem reflete sobre a colonização do pensamento pela família, sociedade e meios de comunicação e a opressão sobre o corpo feminino, sua existência por inteiro e seu sexo. A leitura performática online do texto pela atriz Beatriz Barros acontece no dia 15 de novembro, às 19h, sendo transmitida pelo website de conteúdo adulto Cam4. Acesse aqui.
Não é novidade que a revolução tecnológica que atravessamos já há algumas décadas vem modificando profundamente a forma como as pessoas comunicam-se, relacionam-se e consomem. No texto FAKE: manipulação e ética digital, Lucila Vilela fala sobre dois dos temas mais importantes neste contexto: as fakenews e as deepfakes. O que Lucila chama de “alfabetização digital” deve ser encarada como urgência da contemporaneidade por uma diversidade de motivos, em especial para garantir a existência do Estado Democrático de Direito.
No texto Quem é essa mulher? (2016), a escritora e historiadora Larissa Ibúmi apresenta, faixa a faixa, de forma atenta e sensível, o álbum Mulher, do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira, desenvolvido durante os anos em que seus integrantes frequentaram a Faculdade de História na USP. Para Larissa, Mulher, que foi lançado em 2015, é um registro antropológico e historiográfico da trajetória social da mulher, despontando como uma das principais obras de música popular brasileira produzidas nas últimas décadas.
Quando um artista procura um lugar para abrigar seu projeto, quase nunca é tarefa fácil. O Workshop Empoderador e Feminista Realizado por Homens Fotógrafos, performance/intervenção de Luiza Prado que expõe e critica aberta e agressivamente o assédio sexual no meio fotográfico, nunca foi realizado publicamente. Ele faz parte de uma série de trabalhos da artista que questionam a manipulação do feminino dentro da fotografia. Integra esta edição como vídeo, produzido no ateliê da artista, em 2016.
Variações Gráficas é uma série de experimentos gráficos impressos, produzida por William Galdino em 2016. Cada exemplar, numerado e único, é uma mistura de linguagens, técnicas e materiais: serigrafia, tipografia, xerox, xilogravura, letraset, desenho, pintura, tinta nanquim, caneta hidrográfica, tinta acrílica, aquarela, carimbo, stencil e adesivo. Variações Gráficas n° 7, carregado de erotismo e construções imagéticas surreais, é o último exemplar da série que segue de posse do artista.
Inspirado pelas imagens da La Pocha Nostra, quando Ali do Espírito Santo começou a formular a personagem Kassandra Kanibal, buscava um deslocamento da brancura e dos padrões hegemônicos do Sul do Brasil, região onde estudou, vive e trabalha. Desenvolvida em 2015, a série Kassandra Kanibal parte da proposição de criar mitologias fantásticas sobre um fundo de ironia e perversidade, fazendo uso das linguagens da performance e da fotografia e da incorporação de signos.
Os Poemas Profundanças, produzidos entre 2015 e 2017, são parte de uma coleção de escritos da artista Jeisiekê de Lundu, entitulada Escritora de Gaveta: a expressão poética de seus gritos ao passar por mais uma transição, quando enfrenta o adoecimento psíquico mas também desfruta do renascimento espiritual e da revolução pessoal. Os Poemas profundanças integraram a publicação Profundanças 2 – Antologia Literária e Fotográfica, organizada por Daniela Galdino em 2017.
Geovanni Lima é performer, artista visual, produtor cultural e pesquisador. Em sua obra, produzida em diálogo íntimo com suas memórias, articula questões relacionadas ao seu próprio corpo, enquanto homem negro, gordo e LGBTQIA+. Geovanni Lima: a performance nas raízes da pele traz uma entrevista inédita com o artista, realizada em 2020 pela pesquisadora e curadora Maíra Freitas. As imagens que ilustram a entrevista compõem o terceiro volume da série Click ou isto não é um preto, de Geovanni, também inédito.
Em Archivos y video: no lo hemos comprendido todo, texto em espanhol escrito em 2013, a pesquisadora, curadora e artista Mariela Cantú fala sobre os arquivos audiovisuais, sua função de salvaguarda e pretensão de permanência e, em especial, sobre os cuidados que envolvem sua manutenção, incluindo o processo de digitalização. Mariela parte da ideia de que os arquivos definem nosso contato com o passado não só através das imagens que conservam mas também de suas próprias tecnologias.
Na Seção: A cena de arte auto-organizada, Articulações da cena de arte independente de Berlim, traz uma entrevista com Friederike Landau, pesquisadora e pós-doutoranda no Departamento de Geografia da Simon Fraser University, em Vancouver/Canadá. Seus interesses giram em torno da política urbana, da teoria espacial e dos modos de mobilização política e crítica institucional, em especial do ativismo liderado por artistas e museus. Realizada em Berlim/Alemanha, em 2018, e conduzida por mim, a entrevista é parte da Fase 2 da pesquisa CÓRTEX.
Bom passeio a todxs! Seguimos com força!
Maíra Endo
Organizadora e editora-curadora do HIPOCAMPO