A HISTÓRIA DA _RTE contada por Bruno Moreschi 

Bruno Moreschi. A HISTÓRIA DA _RTE, 2017.

A HISTÓRIA DA _RTE é a área das ciências humanas em que se constrói uma narrativa sobre a criação de objetos e experiências realizados, em sua maioria, por homens brancos , europeus, estadunidenses e pintores (alguns, gênios)…”

Esta é a conclusão que o artista Bruno Moreschi chega após analisar os resultados de seu projeto A HISTÓRIA DA _RTE, em que identifica o perfil dos artistas encontrados nos principais livros utilizados nos cursos de graduação de artes visuais no Brasil. Em 11 livros, Moreschi encontrou 2.443 artistas, dentre os quais 215 (8,8%) são mulheres, 22 (0,9%) são negras/negros e 645 (26,3%) são não europeus. Dos 645 não europeus, apenas 246 são não estadunidenses. E em relação às técnicas utilizadas, 1.566 são pintores.

Com esses dados, foram elaborados 15 mil panfletos (13 mil em português e 2 mil em inglês) distribuídos gratuitamente no ano de 2017 na entrada de museus e centros culturais de diversos países. O material, ilustrado com gráficos e tabelas, evidencia o caráter excludente da História da Arte Oficial.

Bruno Moreschi desconfia da história que nos é contada e comprova em números sua hipótese. Uma revisão da história com um olhar consciente faz-se urgente. E são os próprios homens brancos ocidentais que percebem essa falha. Sua conclusão reafirma o discurso de alguns teóricos do século XXI que também perceberam essa discrepância. Hans Belting no livro O fim da história da arte (1983), abriu precedente para uma série de pesquisas que passaram a questionar a forma como foi contada a história da arte, limitada a partir de um olhar construído por homens, brancos, europeus e norte-americanos. Para Belting, “o pretenso universalismo da história da arte é um equívoco ocidental”[1]. Seu discurso do fim aponta para uma mudança no discurso, já que o objeto não se ajusta mais aos antigos enquadramentos.

Uma história fixa estabelecida por um regime de verdades dificilmente consegue abarcar todas as subjetividades que cercam o momento criativo. O tom de certeza que conduz essa história é interrogado por Georges Didi-Huberman que suspeita de nossas certezas diante das imagens advindas de categorias autorizadas pela disciplina história da arte. “Os livros de história da arte sabem nos dar a impressão de um objeto verdadeiramente apreendido e reconhecido em todas as suas faces, como um passado elucidado sem resto”[2]. O conhecimento específico, reconhecido como ciência, acabou por impor um discurso de saber, uma forma específica de discurso da arte. Michel Foucault, no livro A arqueologia do saber, percebe a regularidade das práticas discursivas: “entre uma formulação inicial e a frase que – anos, séculos mais tarde – a repetiu mais ou menos exatamente, ela não estabelece nenhuma hierarquia de valor; não faz diferença radical. Procura somente estabelecer a regularidade dos enunciados”[3]. Didi-Huberman propõe a realização de uma história crítica da história da arte, “uma história que levaria em conta o nascimento e a evolução da disciplina, suas causas práticas e suas consequências institucionais, seus fundamentos gnoseológicos e seus fantasmas clandestinos”[4]. A consciência que se constrói a partir do entendimento histórico e artístico no campo do discurso aponta a necessidade de repensar a história, entendendo posturas que já não cabem mais no mundo. É preciso discutir o indiscutível.

Bruno Moreschi. A HISTÓRIA DA _RTE, 2017.

Desde  o principio dos anos 80 tem-se discutido em conferencias e colóquios como a história da arte é pensada. James Elkins nos pergunta “como é possível ser justo com todas as culturas enquanto contamos a história da arte como nossa história, calcada em nossa cultura e nossas necessidades?”[5] Reduzir a ênfase a arte europeia, olhar para a questão de gênero, raça e minorias, evitar a ênfase à pintura, escultura e arquitetura, criticar os cânones, dar lugar às teorias visuais de psicanálise, semiótica, e outras, ou encarar a tradição de pensamento hegeliano, são alguns dos pontos que começaram a ser repensados tendo em vista problemáticas contemporâneas.

A consciência da discriminação de gênero e etnia presente na construção do discurso da história da arte é evidenciada por Bruno Moreschi em uma pesquisa que se apresenta como obra de arte. Seu trabalho reúne teoria e prática com um pensamento artístico. Sua ação acontece na distribuição gratuita do material visual, feito em forma de panfleto, que contém as principais informações encontradas na pesquisa. Essa publicação com dados objetivos e gráficos pontuais e a disponibilização desse material online constitui seu trabalho que propõe um olhar crítico sobre a história, trazendo a teoria para o campo da prática artística. Moreschi provoca uma reflexão que deve ser discutida por  instituições culturais que, responsáveis pelo cenário restrito da História da Arte. “O que diretores/diretoras e curadores/curadoras dos museus têm a dizer sobre o cenário aqui apresentado? Que ações concretas estão sendo tomadas para que os acervos que coordenam deixem de ignorar as produções artísticas de mulheres, negras e negros, indígenas e não europeus, por exemplo?”, pergunta o artista.

Apesar do cenário ainda ser excludente, como demonstra Bruno Moreschi, quando analisa, por exemplo, a lista das figuras mais influentes da arte contemporânea publicada na revista ArtReview em 2016, algumas iniciativas contribuem para uma expansão da história da arte incluindo artistas que até então haviam tido pouca ou nenhuma importância. É o caso, por exemplo, da tese de doutorado “Para uma história das sensibilidades e das percepções: vida e obra em Valda Costa”, de Jacqueline Lins, que resgata a história de Valda Costa, artista negra, moradora da comunidade do Morro do Mocotó, em Florianópolis.

Vivalda Terezinha da Costa (1951-1993) chegou a viver de sua arte frequentando o circuito artístico da cidade nas décadas de 1970 e 80, mas depois caiu em decadência e foi esquecida. A artista foi modelo e discípula de Martinho de Haro, um artista modernista com reconhecimento nacional. Autônoma e acolhida pelo circuito, Valda Costa chegou a conquistar nome e posição no mercado de arte local vendendo suas obras por um bom valor comercial. Sua decadência coincide com a união com Marcão, com quem teve seis filhos e que, segundo relatos, tinha uma personalidade dominadora e violenta, não trabalhava e vivia de sua produção. Assim, com necessidade de sobrevivência, recusava a intermediação de um marchand acreditando que a venda direta ao colecionador poderia ser mais rentável e imediata. A manifestação de problemas psicológicos combinado com o uso de drogas a levou a ser internada em um hospital psiquiátrico. Fato que se nota um certo silenciamento em sua biografia.  Valda Costa, diagnosticada com Aids, morreu em 1993 com 42 anos. Lins entende que a fortuna crítica sobre Valda Costa é bastante incipiente e que existe  “uma certa lacuna na historiografia da arte em Santa Catarina: a de Valda Costa e a da sua vasta produção realizada e amplamente difundida no meio artístico e cultural local, no período compreendido entre o ano de 1974, marcado pela sua primeira exposição “oficial”, e o ano de 1993, data de sua prematura morte”[6].

Valda Costa, s/título, 1979.
Valda Costa

Lins conta que na época em que já estava doente, Valda precisava vender e “começou a assinar os trabalhos com outros nomes, pois as pessoas se negavam a “pagar pouco” pelo trabalho dela. Esta foi a sua estratégia, criar pseudônimos para as pessoas adquirirem seu trabalho por um valor inferior ao do “mercado””[7]. Garantindo o tempo que urge sobre a condição de sobrevivência, Valda Costa assinava como Miguel Angelo, pois dizia que quem pintava não era ela e sim, o mestre. A referência da história da arte, povoada de mestres e gênios, acompanhou sua trajetória e ironicamente, usando o nome de seu mestre, conseguia vender mais rápido e barato. A história de Valda Costa, assim como muitas outras, começou a ser resgatada com o trabalho de pesquisadores que passaram a entender, no século XXI, a necessidade de recuperar uma história para além do universo masculino branco ocidental.

A ironia de Bruno quando em sua conclusão aponta a presença de “alguns gênios”  demonstra a presença de um discurso romântico. A noção de gênio que provém de um pensamento kantiano, entende o momento de criação centrada em uma origem pessoal individualista, espontânea, um sentimento originário que parte da natureza do artista. O momento de gerar é o que conecta a arte à ideia de gênio. Giorgio Agamben esclarece que “os latinos chamavam Genius ao deus a que todo homem é confiado sob tutela na hora do nascimento. A aproximação etimológica acontece entre genio [gênio] e generare [gerar]”[8]. Se dizia que “cada ser humano macho tinha seu Genius, e cada mulher a sua Juno, ambos manifestação da fecundidade que gera e perpetua a vida”[9]. Assim, na própria palavra utilizada para exaltar artistas como grandes mestres já se excluía a presença feminina. Além disso, como reconhece Foucault, não se deve mais procurar o ponto de origem absoluta a partir do qual tudo se organiza; “nada pode ser considerado como pura e simples criação de um gênio[10]. As mulheres passaram a ter acesso às escolas de Belas Artes no início do século XX, até então somente eram aceitas na condição de copistas, longe de um reconhecimento artístico. Em meados do século XX, com a cidade de Nova York tornando-se o novo centro artístico começaram a abrir pequenos espaços, respiros em que as mulheres puderam se manifestar.

A pesquisa de Bruno reflete uma compreensão social e política que denuncia o caráter excludente de uma única história da arte, linear, imutável e verdadeira, que ainda é utilizada como principal fonte bibliográfica nos cursos de formação artística. A presença de negros, indígenas e mulheres aparece na história da arte somente nas imagens, de musa ou elemento exótico, e raramente como artistas, pois a criação, no discurso romântico que consolidou a história da arte, está ligada a uma interferência divina pertencente à natureza masculina. Assim, a exclusão pautada em gênero, raça e em determinadas técnicas é constatada por Bruno Moreschi, artista, homem, branco, latino-americano, que reconhece o furo da história. No entendimento de Didi-Huberman, “o historiador não é senão, em todos os sentidos do termo, o fictor, isto é, o modelador, o artífice, o autor e o inventor do passado que ele dá a ler”[11]. Bruno Moreschi ao propor uma pesquisa como trabalho artístico comprova cientificamente a fragilidade de uma história narrada pelos vencedores.

Bruno Moreschi. A HISTÓRIA DA _RTE, 2017.

NOTAS

[1] BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p.11

[2] DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante la imagen. Murcia: Cendeac, 2010, p.13

[3] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.115

[4] DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit.,  p.12

[5] ELKINS, James. Stories of Art. New York: Routledge, p.117

[6] LINS, Jaqueline. Para uma história das sensibilidades e das percepções: vida e obra em Valda Costa. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História.

[7] Ibdem,

[8] AGAMBEN, Giorgio. Genius. In: Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007, p.15

[9] Ibdem

[10] FOUCAULT, M. Op. Cit., p.116

[11] DIDI-HUBERMAN, G. Op. Cit., p. 10

* Texto escrito em 2018.

Lucila Vilela é artista visual e pesquisadora. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2017). Mestre em Estudos Avançados em História da Arte, pela Universidade de Barcelona (2008). Graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2001). Realizou o Projeto CASA, de Artes Visuais e Performances, nas cidades de Florianópolis/SC (2010) e Joinville/SC (2014) com o prêmio Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, da Fundação Catarinense de Cultura. Co-editora da Revista Digital InterArtive: Contemporary Art and Thought (www.interartive.org). Vive e trabalha em Florianópolis-SC.