A Virada Cultural, que aconteceu dia 18 e 19 de maio em São Paulo, foi Inspirada no festival francês Noite Branca (Nuit blanche), que acontece todos os anos em Paris desde o ano de 2002. Aqui em sampa ela surgiu três anos depois, em 2005, promovida pela Prefeitura da cidade, por meio da Secretaria Municipal de Cultura. Atualmente são 24 horas ininterruptas de acontecimentos, eventos culturais gratuitos espalhado não só mais pelo Centro da cidade, mas também pelas sua periferia, pelas suas bordas.
Antigamente ela tinha como um dos seus principais objetivos reverter o esvaziamento da região central de São Paulo, convidado a população a ocupá-la, incentivando um convívio social mais acessível a todas as camadas das classes sociais dessa megalópole. Mas de alguns anos para cá ela se esparramou por outras regiões de São Paulo, em todas as suas zonas, decentralizando a Virada, causando uma [re]virada no evento que de início não foi bem recebido, mas se mostrou e tem se mostrado fundamental para a nova dinâmica da cidade.
Com o passar dos anos fui percebendo que não um centro, há centros, eixos vivos e dinâmicos que funcionam e geram conteúdos diversos de forma autônoma. E esses “centros”, que são e estão nas bordas da cidade são fundamentais para entendermos hoje a dinâmica da produção e apropriação dos espaços periféricos. Quando a Virada Cultural de deslocou além do centro da cidade, ela desdobrou de forma subjetiva em relação ao seu objetivo principal: ocupar espaços, agora mais e novos espaços, e incentivar um convívio social e cultural mais acessível a todas as camadas das classes sociais.
Penso na fenomenologia das bordas, sob os pontos de vista físico, social, econômico e cultural, que auxiliam a compreensão do complexo urbano. Lembrando que a fenomenologia é o estudo de um conjunto de fenômenos e como se manifestam, seja através do tempo ou do espaço, e que consiste em estudar a essência das coisas e como são percebidas no mundo.
E como perceber São Paulo? Essa metrópole com características do modelo de uma cidade espraiada, o pouco comentado “urban sprawl”, espraiamento ou espalhamento de cidades, que é um fenômeno caracterizado pela expansão horizontal das cidades muito antes de se atingir uma densidade demográfica ideal. Ela se expande nas bordas, na periferia, mas não se adensa. São os bairros ou cidades dormitório que surgem numa região mais afastada ou na área metropolitana de uma grande cidade como sampa. São chamados assim porque não possuem uma oferta mínima de empregos e serviços como o centro, gerando um deslocamento diário de boa parte dos seus moradores até a área urbana central. Esse deslocamento leva tempo e tempo é ouro nos dias atuais.
A organização dos espaços públicos e construídos é o que determina a forma urbana de uma cidade. Assim, uma cidade poderá ser dispersa – com baixas densidades populacionais, ou compacta, com densidades equilibradas e diferentes centralidades. Por intermédio do software CityCell, desenvolvido pelo Laboratório de Urbanismo da FAUrb, da Universidade Federal de Pelotas [RS], foi apontado que existem as chamadas “ondas” no que diz respeito à urbanidade. A primeira, mais externa, concentra os menores valores de centralidade; e a segunda mais interna, tende a concentrar os maiores valores de potencial de mudança e de novas centralidades. E são nas bordas que estão as mudanças.
É fundamental a Virada Cultural [re]virar não só no centro, onde ainda concentra a maior parte de suas atrações, mas também na periferia, nas bordas da cidade. Vale lembrar que a ineficiência em uma cidade decorre da inadequação da norma em relação às necessidades urbanas. E é necessário a Virada Cultural capturar a dinâmica das mudanças, o zeitgeist. Mesmo quando o paradoxo se instaura quando o processo de urbanização estimula a segregação sócio-espacial. Afinal, a sociedade urbana, capitalista, predatória, que espreme nosso tempo valioso transforma seletivamente os lugares de acordo com as suas necessidades e seus conflitos, as fricções.
Quanto mais se adensa o centro, mais se adensa as camadas de renda mais alta, de mais acesso à bens materiais e imateriais, incluso a cultura e educação tão importantes e resilientes no governo atual que insiste em acachapá-las. Quanto mais você se encontra no centro, mais serviços públicos e urbanos vão estar a sua disposição. Mas, na periferia, nas bordas da cidade, é onde se encontram as camadas mais pobres da sociedade, excluídas, sem acesso, com carências em infraestruturas e serviços urbanos, condições desiguais de acesso à moradia, entre N outras coisas. São nas bordas que fazem desse grande tecido urbano que é a cidade de São Paulo as fricções serem mais do que necessárias, serem fundamentais. Não bastam apenas as ficções, o entretenimento por si só. É preciso ir além e questionar tudo isso que acontece agora por intermédio da arte e da cultura. E é na borda que pulsa e ocorre simultaneamente a exclusão e a concentração, a criação, o novo, o desbordo, aquilo que [trans]borda, que [extra]vasa.
Maio de 2019
Jurandy Valença é alagoano, morou e trabalhou em São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro. Atualmente é radicado em São Paulo (SP). Artista visual, curador, jornalista e poeta, morou e trabalhou com a escritora e poeta Hilda Hilst entre 1991 e 1994, publicou um livro de poesia em 1992, e trabalhou com moda no extinto Phytoervas Fashion, no qual foi coordenador de produção. Desenvolve trabalhos em fotografia desde 1998. Participou de mais de 75 exposições, entre individuais e coletivas, nas quais recebeu três prêmios aquisições; realizou cerca de 15 curadorias e foi tema de Documentário exibido na TV Sesc-Senac. Possui obras em acervos públicos e em coleções particulares. Colaborou para diversas revistas como Caros Amigos, Harper’s Bazaar, Select, Bamboo, Dasartes e Mag!, entre outras, escrevendo sobre artes, arquitetura, design e literatura. Foi coordenador da Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, entre 2007 e 2010, diretor de projetos do Instituto Hilda Hilst entre 2012 e 2014, e curador da galeria online www.conectearte.com.br. Foi coordenador geral dos Centros Culturais e Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, redator do Mapa das Artes São Paulo por 16 anos e diretor adjunto do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Atualmente realiza curadorias para o Atelier Paulista e para a Fundação Mokiti Okada. É colaborador de arte e cultura na plataforma Bemglô, e na revista Continente.