Hilda Hilst: Um Caracol de Fogo, Lúteo-Rajado

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A primeira vez que ouvi falar do nome Hilda Hilst foi em 1979, em uma matéria do programa Fantástico, na qual ela afirmava se comunicar com mortos. Eu tinha 10 anos e aquilo me assombrou durante semanas, meses. Afinal, quem era aquela mulher que escrevia e vivia isolada, cercada de cachorros, em uma chácara chamada Casa do Sol; que nomeava Deus pelos mais diversos nomes como Relincho do Infinito, Grande Obscuro, Sorvete Almiscarado, Lúteo-Rajado, Querubim Gozoso, O Mudo Sempre, Caracol de Fogo e O Inteiro Desejado, entre tantos outros; e que ainda se comunicava com os mortos? Eu vivia em Maceió, já era um leitor compulsivo e sonhava em ser escritor e poeta. Oito anos depois uma amiga me deu um livro de Hilda para ler, “A Obscena Senhora D”, e desde então minha vida nunca foi a mesma. Não era e não é uma leitura fácil, mas sabia que estava diante de algo completamente diferente:  “Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu a procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas. Derrelição Ehud me dizia, Derrelição – pela última vez Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu?”.

 

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Eu não só ouvi como resolvi ler o que podia de Hilda e, mais que tudo, conhecê-la pessoalmente. E lembrei imediatamente do Samuel Beckett por dois motivos. O primeiro, porque ele havia sido secretário do James Joyce [e eu considerava Hilda o Joyce dos trópicos, da língua portuguesa]; segundo porque ele descrevia um de seus personagens da maneira como eu me sentia ao ler Hilda: “…seu ser estava sem eixo ou perfil, seu centro em toda parte e a periferia em parte alguma”.  Aos 21 anos sai de Maceió – de ônibus – para São Paulo com uma ideia fixa: ser o secretário de Hilda Hilst. E descobrir novos eixos. Era outubro de 1990, fui morar em uma pensão perto da Avenida Paulista, e de um orelhão liguei três vezes para a Casa do Sol, o único numero de telefone que até hoje nunca esqueci, e que havia conseguido por intermédio de um amigo. Só na terceira vez ela atendeu, lhe disse meu nome e que tinha vindo de Alagoas para conhecê-la. Ela duvidou, fez várias perguntas, respondi todas e só então ela me convidou para ir à Casa do Sol. Nos conhecemos em um final de semana de novembro e em março de 1991 ela me convidou para morar e trabalhar com ela em troca de casa, comida e tempo. Hilda dizia sempre que o tempo é mais precioso que o dinheiro, e mostrava um relógio na sala, parado, que marcava uma hora aleatória e onde se lia: “É mais tarde do que supões”.

 

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Ela reclamava algumas vezes que diziam que sua escrita era hieróglifa, ‘uma tábua etrusca’. Mas eu sempre a lembrava que a escrita hieróglifa significa “escrita dos deuses”. Ela ria discretamente, acendia um Chanceller – seu cigarro preferido – e voltava à leitura do dia. Ela nunca lia apenas um livro, sempre eram dois ou três abertos na sua mesa, todos grifados com canetas de diferentes cores que ela sempre tinha à mão. E invariavelmente um dos livros era algum que ela estava relendo pela segunda ou terceira vez. E na maioria das vezes um deles era alguma biografia, gênero literário que ela gostava muito, ou um livro de filosofia.

 

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Nunca esqueço quando semanas depois de estar morando na Casa do Sol, pedi a ela para ler meus poemas e opinar sobre. Eram cerca de vinte poemas, creio, que selecionei de uma série de mais de 50 escritos entre os 18 e 21 anos. Hilda pediu para eu lê-los em voz alta, pois assim ela saberia o tom, o ritmo que eu tinha dado ao poema, e que ao final da minha leitura iria opinar. Concordei e me pus a ler os poemas. Ao final, Hilda me olhou com firmeza, pegou no meu braço com delicadeza e disse calmamente: “Ju, se você pensa que é poeta está completamente enganado, isso é uma merda, não é poesia. Ainda.” E levanta da cadeira, vai até a estante de livros ao lado e escolhe três livros. Eu jurava que seriam de poesia, mas não. Hilda me dá os volumes e diz para eu ler e que depois iríamos comentar sobre. Eram “Ecce Homo”, do Nietzsche; “O Livre Arbítrio”, do Schopenhauer; e “Temor e Tremor”, do Kierkegaard. E eu de cara perguntei: “Mas Hilda, são todos de filosofia!”. E ela responde: “Sim, Ju, um grande poeta é mais que tudo um grande filósofo. E esses vão te apontar uma direção, para dentro”.

 

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Quando releio suas obras sempre lembro de uma frase do dramaturgo Roberto Alvim: “O que precisa ser realmente eficaz não é a narrativa, mas o gráfico de forças que o autor mobiliza em sua escritura”. É que ler Hilda requer um esforço quase físico. Não é só a mente, o cérebro que age, é todo o corpo. Sua escrita causa estados sinestésicos no leitor. Ela retorce a sintaxe, o fluxo narrativo e cria uma construção lingüística que cria novas e outras possibilidades de leitura, com junções, conexões, fissuras, brechas, rasgos, interstícios, linhas de fuga, dobras e desdobras no discurso. Outras maneiras de habitar as coisas, a linguagem. Nessa estrutura polissêmica feita de epifanias, descalabros, humor, desejo, erudição, sexo, religião, política, filosofia e cotidiano, sua escrita se apresenta comprometida com a produção de sentidos, significados, possibilidades, a produção de perguntas, de questionamentos, de dúvidas. E mais que tudo, de intensidades. Hilda Hilst não produz entendimentos, produz intensidades. Só muitos anos depois fui perceber que a Hillé de Hilda, além de ser – de certa maneira – ela mesma, era também a Hylé de Deleuze e Guattari, aquela que é um fluxo contínuo, que “designa a continuidade pura que uma matéria possui idealmente”. Assim era Hilda para mim. Um fluxo contínuo de intensidades. E que parecia anunciar como o Demônio em sua peça “A morte do patriarca”, a chegada de um novo tempo em que será preciso “reviver alguma verdade”, “experimentar outras palavras”, descobrir “alguma coisa que emocione novamente” o homem.

 

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* As imagens que integram esta publicação são do acervo pessoal de Jurandy Valença e do acervo do Instituto Hilda Hilst.

Jurandy Valença é alagoano, morou e trabalhou em São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro. Atualmente é radicado em São Paulo (SP). Artista visual, curador, jornalista e poeta, morou e trabalhou com a escritora e poeta Hilda Hilst entre 1991 e 1994, publicou um livro de poesia em 1992, e trabalhou com moda no extinto Phytoervas Fashion, no qual foi coordenador de produção. Desenvolve trabalhos em fotografia desde 1998. Participou de mais de 75 exposições, entre individuais e coletivas, nas quais recebeu três prêmios aquisições; realizou cerca de 15 curadorias e foi tema de Documentário exibido na TV Sesc-Senac. Possui obras em acervos públicos e em coleções particulares. Colaborou para diversas revistas como Caros Amigos, Harper’s Bazaar, Select, Bamboo, Dasartes e Mag!, entre outras, escrevendo sobre artes, arquitetura, design e literatura. Foi coordenador da Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, entre 2007 e 2010, diretor de projetos do Instituto Hilda Hilst entre 2012 e 2014, e curador da galeria online www.conectearte.com.br. Foi coordenador geral dos Centros Culturais e Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, redator do Mapa das Artes São Paulo por 16 anos e diretor adjunto do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Atualmente realiza curadorias para o Atelier Paulista e para a Fundação Mokiti Okada. É colaborador de arte e cultura na plataforma Bemglô, e na revista Continente.