Boi Neon parece transpirar na tela. O filme dirigido por Gabriel Mascaro exala a proximidade entre corpo e animal. O convívio com bois e cavalos faz com que os personagens estejam sempre à espreita, lidando com momentos cotidianos, concentrados em seus afazeres, atravessados por sonhos e desejos. Existem pontos de tensões, mas não existem grandes conflitos, as situações são resolvidas dentro de um convívio harmônico e inevitável. E muito disso se deve à liberdade de expressão. O entendimento do corpo transpõe vontades conduzidas por uma soltura comportamental. Esse cenário é estabelecido dentro do contexto das vaquejadas, no interior do nordeste, um esporte popular que consiste em laçar o boi e fazê-lo ir ao chão. O ambiente predominantemente masculino é interferido pela ausência de preconceitos com o universo feminino. Assim, o imaginário nordestino, principalmente no âmbito cinematográfico, é resignificado.
O notável trabalho de fotografia de Diego Garcia faz sentir na pele a intensidade de cada cena. A fusão entre homem e animal aparece como fio condutor em cenas impactantes como na dança em que Galega (Maeve Jinkings) usa um figurino de cabeça e patas de cavalo simulando uma espécie de Minotauro, mas com cabeça de cavalo e corpo de mulher. A referência mitológica está também presente na brincadeira de Cacá (Alyne Santana) com o cavalo alado, uma alusão à Pégaso que incita a imaginação e a vontade de voar longe. Na cena em que um adestrador consegue massagear um cavalo é possível ver dança, uma dança quase ritualística onde os limites do humano e do animal se tocam. A relação do feminino e do masculino com o cavalo revela uma carga erótica envolvente em todo o filme. Boi Neon realça essa ambiguidade, presente na figura de Eros, manifestada nos limites entre humano e animal, feminino e masculino, brutal e sensível. No aspecto aéreo e fugidio, o voo da imaginação contrasta com a terra pisoteada, o cavalo traz o sonho e o gado, a realidade.
Mascaro enfatiza que o filme “não trabalha com uma inversão de papéis de gênero, mas sim com uma dilatação de possibilidades”1. De fato, a força e a delicadeza são vistas tanto nos homens quanto nas mulheres que convivem em harmonia, sem hierarquias ou posturas machistas mostrando uma relação horizontal. O modelo de relação amorosa e também familiar é trabalhado fora dos padrões sociais. Boi Neon desconstrói paradigmas e bagunça comportamentos de gênero libertando as amarras que emperram as relações humanas. Um vaqueiro que gosta de costurar, o outro que cuida dos cabelos, uma mulher que conduz o caminhão, uma vigilante grávida e uma criança sem pai são alguns dos personagens. Todos são héteros, mas não normativos. Cada um expressa seus gostos sem medo do julgamento alheio trazendo uma sensação de liberdade. Mas o que causa estranhamento não é somente a dissolução de códigos de gênero, mas sim a naturalidade com que tudo isso é tratado e é nesse ponto em que se encontra a poesia do filme.
A única função que é apresentada dentro dos padrões heteronormativos é a da cozinha que aparece comandada pela mulher, Galega. No entanto é enfatizada a brutalidade de tal oficio, o ato de matar e devorar outro animal requer uma força masculina, mostrada na cena em que Galega quebra o pescoço de uma galinha. Em outra cena, uma festa é animada com uma dança que alterna todos os tipos de par, entre homens, mulheres e crianças, todo dançam com todos, com leveza, brincantes e sem discriminação. Enquanto cada personagem exerce seu trabalho, os sonhos pairam no ar e as relações humanas lidam com diferentes humores, estados de espírito e ambições. A vida vai passando e o dia a dia dessa trupe é retratado com humor e sensibilidade, sem reprimir a espontaneidade de cada personagem.
E é a realidade que dá uma rasteira no final do filme quando uma cena de sexo, de nove minutos, sem cortes e bastante verossímil é protagonizada por uma gestante. A imagem da grávida, imaculada, associada de maneira sintomática, no cinema e nas artes em geral, à da virgem Maria, na ficção cristã, é desconstruída mostrando o desejo carnal que percorre seu corpo, um corpo suculento e sem culpa. Ali onde a sedução foi instalada, no meio da fábrica de roupa, o nu aparece despido de julgamentos, um desejo que não deve ser reprimido. Não interessa quem é o pai daquele filho, se ele é presente, se fugiu ou se ela está fazendo a coisa certa ou errada porque não existe certo ou errado. É a mulher dona de seu próprio corpo e é ela quem decide o que pode fazer ou não, sem dar explicações. E ele tampouco se importa, o que interessa neste encontro entre Iremar (Juliano Cazarré) e Geise (Samya de Lavor) é apenas o amor e o momento presente. Existe atração e desejo onde cada um é responsável por si, sem cobranças sociais. Naturalmente. Porque em Boi Neon tudo é natural. E livre.
NOTA DE RODAPÉ
1 Entrevista no Programa Metropolis (TVCultura). Disponível em: http://tvuol.uol.com.br/video/metropolis–entrevista-com-cineasta-gabriel- mascaro-0402CD1B3670CCA14326/
Lucila Vilela é artista visual e pesquisadora. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2017). Mestre em Estudos Avançados em História da Arte, pela Universidade de Barcelona (2008). Graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2001). Realizou o Projeto CASA, de Artes Visuais e Performances, nas cidades de Florianópolis/SC (2010) e Joinville/SC (2014) com o prêmio Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, da Fundação Catarinense de Cultura. Co-editora da Revista Digital InterArtive: Contemporary Art and Thought (www.interartive.org). Vive e trabalha em Florianópolis-SC.