A pandemia do Covid-19 há pouco completou seu primeiro ano no Brasil. Até hoje, dia 08 de maio de 2021, quando comecei a escrever este texto editorial, 421.484 pessoas perderam suas vidas, as primeiras vítimas da pandemia e as últimas da omissão de todo um (des)governo genocida, agora sob investigação.
A média móvel de mortes nos últimos 7 dias é 2.131, o que significa uma queda de 15% em relação à semana anterior e aponta uma tendência de estabilidade nos óbitos causados pelo vírus. De fato, hoje, dia 21 de maio de 2021, quando termino de escrever este texto, a média móvel de mortes é 1.963. E é isso, por hora teremos que nos conformar com isso. Porque nada sustenta outro tipo de previsão.
É só uma gripezinha.
E daí?
Não vai ser comprada.
Nenhum brasileiro vai ser cobaia.
Eu sou o governo.
Não vai ter pra todo mundo.
Sou contra a quebra de patente.
Os que não perderam a vida, hoje sabem o que é uma pandemia, sentiram na pele, na carne, no âmago, na alma, suas facetas mais medonhas.
Vivemos intensamente e repetidamente o isolamento social: a casa como extensão do corpo, o lar como mundo todo, a tela como janela. O cotidiano quase exato e as novas medidas do tempo.
Fomos atirados ao convívio com si: o olho virado para dentro, o pensamento “ensimesmado”, a percepção vívida e atenta de todas as sensações, todos os sentimentos. O tempo que se arrasta.
Amargamos a solidão, abraçamos os ruídos, os erros, os defeitos, os desvios, os distúrbios, a loucura, a ansiedade, o medo, a dor. O tempo que fere.
Ativamos o modo polvo: a rotina equilibrando os pratos, o arremesso dos malabares, o efeito bumerangue. Desenvolvemos heroicos braços elásticos, atualizamos a versão multitarefa. O tempo que escorre.
Desejamos a natureza: o pé na terra, o pé na água, o sol na cabeça. O cultivo doméstico, a compostagem do lixo, a auto-suficiência, a (in)sustentabilidade do sistema político-econômico, a suspeita do desequilíbrio ambiental, a certeza. Tic, tac, tic, tac…
Zelamos com carinho pelas memórias da convivência corpo a corpo: dos beijos, abraços, chamegos, das mãos dadas, do sexo. Sentimos saudade de tudo, de tanto, tanto, já há tanto.
Vivemos o amor à distância, o espaço virtual como espaço real, a internet plena, a tela mediadora, as relações bidimensionais, as redes sociais alimentando e dando vazão. O tempo virtual.
Percebemos mais uma vez os privilégios: a pandemia mata mais pretos e pobres. 6 vezes mais. A fome, a injustiça social no limite da barbárie, a política suja e doente. O tempo que se repete.
Virtualizamos as lutas: o combate ao racismo, o aumento da violência doméstica, dos transfeminicídios e feminicídios, o abandono do setor cultural e a mobilização e articulação de seus trabalhadores, a auto-organização como força. O tempo é hoje.
Percebemos nossa sociedade adoecida: enquanto corpo físico, enquanto organização, enquanto comunidade e enquanto alma. Vamos pela cura da alma.
O HIPOCAMPO dá as boas vindas às novas colaboradoras Bia Porto, de Boissucanga/São Sebastião, e biarritzzz, de Recife! Outra novidade: pela primeira vez, desde que o HIPOCAMPO nasceu em 2016, tive o prazer de trabalhar na produção de uma nova edição na companhia de outras pessoas. Agradecimentos muito especiais à Bia Porto, pela produção dos cards de divulgação para o Instagram, e à Lucila Vilela, pela ajuda com as tags das publicações.
Na edição #9, centrada no aprofundamento de questões relacionadas à pandemia do Covid-19 e ao isolamento social, foram selecionados do acervo HIPOCAMPO trabalhos de Ali do Espirito Santo [Porto Alegre], Alexandre Silveira [Campinas/SP], Bia Porto [Boissucanga], biarritzzz [Recife], Cacá Toledo [Socorro/SP], Henrique Lukas [Barcelona/Espanha], Hifa Cybe [São Luis do Paraitinga/SP], Jeisiekê de Lundu [Salvador], Jurandy Valença [São Paulo], Larissa Ibúmi Moreira [São João Del Rei/MG], Lilian Maus [Osório/Porto Alegre/RS], Laboratório Cisco [Campinas/SP], Lucila Vilela [Florianópolis], Marco Paulo Rolla [Belo Horizonte], Mariela Cantú [Argentina], Paula Borghi [Terra], Ricardo Basbaum [Rio de Janeiro] e Sofia Bauchwitz [Natal]. O HIPOCAMPO #9 também contou com a participação especial de Natali Tubenchlak [Niterói/RJ] e Monica Rizzolli [São Paulo].
O vídeo Poemas aos homens do nosso tempo abre a nova edição de forma muito especial e intensa. Produzido em 2013 por Henrique Lukas, o vídeo é parte do projeto homônimo, idealizado pelo Ateliê Aberto, junto à Ana Luisa Lima e Jurandy Valença. Livremente inspirado na vivência com os artistas durante a residência artística parte do projeto, o vídeo absorve também trechos do livro de Hilda Hilst Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974) e de conversas e escritos da agenda da escritora. As palavras de Hilda parecem ter sido escritas para nós, habitantes do planeta Terra em 2021. Pela voz de Jurandy Valença, elas tocam lá bem fundo dentro da gente. Quem ou o que é o homem?
Em Letargia #1, vídeo inédito produzido em 2014, Alexandre Silveira interfere na lógica funcional de uma ampulheta, subvertendo-a com a suspensão do tempo e o encontro inebriante entre passado, presente e futuro. A sensação de congelamento do tempo e a ideia de repetição, onde todo o tempo é o mesmo tempo, conduz ao estado de inércia ou de profunda inconsciência. A experiência com o tempo é uma constante.
A performance Café da manhã, de Marco Paulo Rolla, foi criada em 2001, especialmente para um evento de performance que aconteceu em Amsterdam. Com duração entre 10 e 20 minutos, a performance trabalha a energia cósmica do caos a partir da encenação de um momento de ruptura repentina da malha fina do cotidiano. O vídeo apresentado no HIPOCAMPO #9 é uma versão curta, gravada e editada pelo próprio artista, 20 anos atrás. A síncope pandêmica.
Produzida ao longo de 2020 pela nova colaboradora do HIPOCAMPO, Bia Porto, em isolamento social pela pandemia do Covid-19, Átrio reúne autorretratos, escritos e fotografias que nos convidam a conhecer a artista através de seu cotidiano, de seus costumes e das dinâmicas da casa que divide com sua família em Boissucanga. Átrio é uma versão da exposição virtual de mesmo nome, lançada em fevereiro de 2021, parte da programação da Mostra Virtual Lei Aldir Blanc em São Sebastião. Átrio fala do que se vê e do que se vive. Somos nossa melhor companhia?
Brotação traz uma colaboração entre Paula Borghi e a artista Natali Tubenchlak, de Niterói/RJ. Os textos Bananeira e Jiboia, escritos entre 2020 e 2021 por Paula, são inéditos e constroem delicados cenários para as obras Dá-se assim com banana, Corações de banana e Pendente ao encontro, de Natali, trazidas para o HIPOCAMPO #9 através de registros fotográficos. Encerra a publicação, o gif Brotação, inédito e produzido especialmente para o HIPOCAMPO por Natali. Nosso solo comum é fértil e está pronto para as novas sementes.
A partir de suas incursões por terra, água e ar, realizadas entre 2012 e 2016 na região um dia chamada Paragem das Conchas, e do desenvolvimento de uma espécie de percepção endêmica, Lilian Maus produziu uma coleção de 18 postais, com imagens e poemas, cada um deles trazendo uma lição da natureza. A educação pelo mato, publicação de Lilian Maus no HIPOCAMPO #9, traz a Lição da cutia que, entre maio e junho, entregue à tentação, “mesmo sob o sol a pino, abandona a proteção das tocas no mato da encosta para explorar as clareiras abertas pelo cultivo das nogueiras”. É tempo de (re)aprender com a natureza.
Imuladar significa cura em um dialeto Bantu. A performance Imuladar, de Jeisiekê de Lundu, apresentada uma única vez no Museu de Arte da Bahia em 2019, é parte da pesquisa Ensaios sobre a cura e trás a perspectiva de cura e saúde para corpos dissidentes, como iniciativa de combate às desigualdades de gênero, etnia e religião. Esta edição do HIPOCAMPO traz o vídeo registro da performance Imuladar, uma proposta de cura por meio de um ritual alimentado por ervas e afeto. A cura é para todas, todes e todos.
Em 2017, na ocasião da apresentação do documentário Pitanga: um negro em movimento na Mostra de Cinema de Tiradentes, Larissa Ibúmi Moreira teve a oportunidade de conversar com Antônio e Camila Pitanga, através da revista CartaCapital, sobre o documentário, a questão da mulher e do artista negro, a política e a história do negro no Brasil e a cultura africana que todes herdamos. Nossas raízes são muitas e são nossas.
Moisés Patrício é um artista multimídia e arte-educador que traz para sua produção o protagonismo negro, abrigando questões relacionadas à política, religião, cultura e à própria negritude. Ler o texto Um convite ao encontro. Aceita?, originalmente publicado na revista Continente em 2020, é quase como passar uma tarde agradável no Zoom com Moisés Patrício e Jurandy Valença, que assina o texto e interfere sempre de forma precisa com suas preciosas referências. Levante sua bandeira lá no aaaaalto.
A publicação Você pode me encontrar?, do Coletivo BAUCHWITZ/RIZZOLLI, formado pelas artistas Sofia Bauchwitz e Monica Rizzolli, é um manifesto sobre o amor: uma coletânea de diálogos amorosos, imagens e outras narrativas. Produzida para integrar a exposição homônima realizada em Madri em 2015, aqui no HIPOCAMPO #9 ela vem acompanhada do vídeo Páginas de Incompatibilidade e de um registro fotográfico da instalação Diálogos de Amor. Vamos falar mais sobre o amor?
O vídeo-performance AMANHECER – comprimidos e álcool (Morro de ti), livremente inspirado na performance A cebola, de Marina Abramović, é parte da peça Morro de ti, do autor argentino Alejandro Genes Radawski, dirigida por Cacá Toledo e apresentada virtualmente em fins de 2020 dentro da programação do Festival Satyrianas, via Sympla. O poema falado, entitulado No es que muera de amor, muero de ti, parte do vídeo-performance, é de autoria do mexicano Jaime Sabines. A dor pela falta do amor.
Na beira do abismo, documentário do Laboratório Cisco, traz uma comovente e sincera troca de vídeo-cartas entre dois amigos há anos separados por todo um oceano: Rodrigo Braga do Couto Rosa, educador que vive em Campinas, no Brasil, e Mariana Lemos, dançarina que vive em Lisboa, Portugal. Produzido para o programa Sala de notícias, do Canal Futura, Na beira do abismo foi ao ar em 2013. A pandemia faz todas as distâncias iguais.
A publicação de Lucila Vilela na #9 traz uma combinação de dois trabalhos inéditos da artista, produzidos ao longo da pandemia do Covid-19: Jogo de Imagens (2020) e Contos do Tinder (2021), o segundo um desdobramento do primeiro. Complementa a publicação o texto também inédito As Cartas de Lucy40, de Barbaro Biscaro. Lucila nos coloca na urgente posição de observadores das relações humanas construídas virtualmente nas redes sociais. Afeto à distância na velocidade do 5G.
Em Arte Privê, texto inédito escrito em 2021, Lucila Vilela fala sobre sua experiência com a leitura performática do texto de Paula Borghi COMO CORPO, pela atriz Beatriz Barros, que aconteceu em novembro de 2020, transmitida ao vivo pelo website de conteúdo adulto Cam4. Uma das riquezas desta experiência está nesse encontro, e eventuais confrontos, entre a performance artística e o universo da pornografia das live cams, frequentado por um público em busca de excitação sexual. Vamos falar mais sobre sexo?
I miss you, performance de Hifa Cybe, fala da devastação do feminino, encabeçada pelos que buscam poder. Inspirada pelo momento do impeachment de Dilma Rousseff e o machismo estrutural de nosso sistema político, fazendo referencia à rituais pagãos e à Inquisição da Igreja Católica, a performance foi registrada em 2017, em meio à energia vital da natureza no bairro Gomeral, em Guaratinguetá. As vítimas de feminicídio alimentam o fogo. O feminismo é uma ideia, e não se mata uma ideia.
Revele seu verdadeiro eu pra mim, vídeo experimental e de linguagem nonsense da estreante no HIPOCAMPO, biarritzzz, foi produzido em 2015 e é inédito, uma jóia retirada dos arquivos da artista para nosso acervo. No vídeo, que reúne imagens do arquivo pessoal de biarritzzz e apropriações de vídeos de auto-defesa do YouTube e de publicidades de sites como o Xvideos e o Pornhub, a artista brinca com símbolos da virilidade, GIFs e manipula “ao vivo” arquivos de células pixeladas. A solidão excitada das transmissões pornográficas online.
Escritos por Ali do Espirito Santo entre 2017 e 2018, Abrir o corpo I, II e III compõem uma sequência de três textos críticos, inéditos, sobre a produção de arte e cultura na contemporaneidade, entendida aqui como um caótico campo de interdependência. Enquanto Abrir o corpo I fala da performance artística cooptada pelo sistema, Abrir o corpo II aborda brevemente o ato criativo e a articulação entre a arte e a vida. Por fim, Abrir o corpo III traça conexões entre corpo, cultura, política e tecnologia. A interdependência é parte de essência da natureza, faz parte de nós, faz parte de tudo.
Editada por Eduardo Coimbra e Ricardo Basbaum, a item-4 dedica-se a discutir, de forma ampla, o tema da sexualidade, tendo sido lançada em versão impressa em novembro de 1996, no Rio de Janeiro. Traz a visão de psicanalistas, antropólogos, escritores, jornalistas e artistas plásticos, em 16 textos de formatos variados: relatos de experiências pessoais, análises de comportamento, ensaios de fundo antropológico ou psicanalítico, textos sobre arte contemporânea, artigos jornalísticos, páginas de literatura e poesia. Vamos falar mais sobre sexualidade?
Encerrando a edição, como de costume, a Seção: a cena de arte auto-organizada traz o texto de Mariela Cantú, La Desindustria del Experimental: alternativas emancipatorias en las Artes Audiovisuales argentinas, publicado originalmente em 2014. O texto, escrito em castellano, propõe que se assuma uma posição emancipatória com relação aos processos industriais que caracterizam a produção das artes audiovisuais na Argentina, sustentando que as encruzilhadas tecnológicas, institucionais e territoriais permitem elaborar outros processos de legitimação, especialmente a partir do crescimento de projetos autônomos ligados às artes audiovisuais. Um viva à auto-organização.
Bom passeio a todes! Seguimos com força!
Maíra Endo
Organizadora e editora-curadora do HIPOCAMPO