O MAIS PROFUNDO É A PELE

Asylum of the birds, 2014.

Há sem dúvida um paradoxo na frase do poeta Paul Valéry “o mais profundo é a pele”. Afinal, nela o profundo está localizado justamente no mais superficial, subvertendo a idéia de que o que é mais importante está situado abaixo da pele, na profundidade; delegando à superfície, à epiderme o que é superficial, desprezível. Ao observar as fotografias de Roger Ballen esse paradoxo vem à tona. Em suas imagens vemos corpos e suas almas; há toda uma superfície de coisas; mas além disso há um território interior que mais que visto, é sentido.

Roger Ballen comprou sua primeira câmera aos 13 anos. Nessa mesma época, os anos 60, sua mãe trabalhava para a agencia internacional de fotografia Magnum, e desde cedo ele teve a oportunidade de conviver com grandes nomes da fotografia mundial e conhecer in loco seus trabalhos. A partir daí, nunca mais parou e construiu nos últimos 30 anos uma obra perturbadora que tem sido exibida em importantes instituições e museus no mundo inteiro como Centro Georges Pompidou, em Paris; o Museu Victoria and Albert, em Londres; e o Museu de Arte Moderna de Nova York, entre outros. A maioria de seus projetos demoram cinco anos para serem finalizados; para depois serem publicados em livros.

Lunchtime, 2001.

Ballen nasceu em Nova York em 1950, mas adotou há 30 anos a maior cidade da África do Sul, Johannesburgo, para viver e trabalhar. Ele começou fotografando pequenas comunidades rurais do país e – entre o começo da década de 80 e 2008 – produziu várias séries de fotografias que ficam no limite entre o fotojornalismo e a fotografia artística. Autor de oito livros, mantém uma fundação com seu nome, dedicada ao ensino da fotografia na África do Sul, a Roger Ballen Foundation.

Para quem aprecia fotografia contemporânea, é impossível olhar suas fotos e não lembrar do trabalho da fotografa Diane Arbus; e mais do que o fato de ambos colocarem em foco pessoas ou situações ‘marginalizadas’, está o voyeurismo explícito, a subjetividade e texturas, não só físicas como psicológicas. Roger Ballen segue dois princípios em sua obra: sempre fotografar em preto e branco e sempre usar o flash. E aí surge um paradoxo pois quanto mais luz ele submete a seus personagens, mas imersos na escuridão, nas trevas eles estão. Eles sempre nos negam algo que está até mesmo escondido deles mesmos. Como ele mesmo diz “para mim o lado escuro sempre tem sido uma fonte de luz e energia. Eu sempre digo para as pessoas que elas não podem encontrar a luz sem conhecer a escuridão”.

Mimicry, 2005.

A sensação que se tem vendo suas fotografias é que o sujeito ou o objeto encontram-se confinados a um ambiente não só isolado do mundo exterior, mas também de si mesmo. Pessoas, animais, sombras, paredes sujas, camas, sofás, desenhos, rabiscos e grafismos feitos em diversas superfícies, lixo, fios, arames são temas e acessórios recorrentes em seu trabalho. Suas fotografias criam espaços calustrofóbicos. O espaço é limitado a um quarto, a uma sala, a um canto, uma parede. Um mundo no qual predomina o caos, onde a realidade e a subjetividade se misturam.

Na série “Dorps: Small Towns of South África” (1986) seu olhar se direcionou para a arquitetura e os interiores, mas foi a série “Platteland: Images from Rural South África” (1994) que colocou o nome de Ballen em evidência. A série causou forte impacto na época com imagens de pessoas pobres e socialmente excluídas, escondidas pela propaganda criada pelo governo do Apartheid, que não queria mostrar o lado B da realidade naquele período. Ballen as exibia em toda a sua precariedade, trazendo à luz a existência de pessoas que estavam à margem, além da vida comum, ‘normal’.


I Fink U Freeky, 2013.

As mais variadas composições e texturas, pessoas, objetos e animais compõem as séries “Outland” (2001) e “Shadow Chamber” (2005).  As fotografias dessa última série apresentam um mundo onde a abundância de desenhos, grafismos e formas geométricas dominam. Há algo de primitivo nela. Ballen se volta para o tema da natureza morta e reúne animais, objetos e os mais variados signos visuais. Na construção de algumas imagens da série “Outland”, cujo tema é o Portrait, a figura humana ou partes dela é o foco principal, mas o que está ao seu redor é tão importante quanto. Todo o entorno, o cenário, os objetos que o cercam, tudo é o ‘retrato’.

Eugene on the phone, 2000.

Há uma aparente ‘normalidade doméstica’ em algumas cenas fotografadas; um dado realístico evidente, mas ao mesmo tempo um estranhamento frente à realidade que se torna algumas vezes teatral. Afinal de contas, o que estamos vendo é real ou ficção? Em muitas de suas fotos as situações são encenadas com atores e modelos que interpretam seus personagens e suas narrativas fotográficas. Mas mesmo assim ao olharmos essas imagens nossa primeira impressão é que são absolutamente reais, registros de uma realidade quase surreal. “Para mim, meus melhores trabalhos são aqueles que eu não compreendo completamente”, afirma o fotógrafo.


Animal Abstraction, 2011.

O que Ballen faz é, de certa maneira, trazer a escuridão de volta ao foco. Como ele mesmo diz “há muito mais luz do que pensamos no lado escuro da vida”. E esse lado que ele nos mostra é habitado por marginalizados, deslocados, quiçá alienados e incapazes de lidar com o caos a sua volta. Há pobreza, doença, sofrimento, dor, mas ainda assim há beleza. Roger Ballen tem um léxico visual muito particular. Não são só questões estéticas que permeiam sua obra, mas também – e principalmente – culturais, sociais e psicológicas. Sua arte não envolve só a fotografia, mas também a literatura e a pintura. O senso do absurdo da vida, da existência está presente em seu trabalho que ele vê como um diário, que “registra o modo como eu vejo as coisas todos os dias”.

Tal qual os personagens de Samuel Beckett, Ballen diz que estamos condenados a viver nesse mundo sem nenhuma alternativa a não ser nos perguntar por que estamos aqui, de onde viemos e para onde estamos indo. Suas fotografias nos coloca num terreno desconfortável. Árido, inóspito, sujo. Tão irreal que parece real. Ou vice-versa. Ballen lhes concede uma atmosfera de estranhamento e nos convoca para fora da nossa zona de conforto. Parece que suas fotos nos pedem a mesma reação que Beckett esperava de quem assistia suas peças: “Espero que a peça atue sobre os nervos da platéia, não sobre seu intelecto”.

Head inside shirt, 2001.

*Texto publicado na revista Mag!, edição 25, em 2011, a partir de uma entrevista que Jurandy Valença fez, por vídeo-conferência, com Roger Ballen.

Jurandy Valença é alagoano, morou e trabalhou em São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro. Atualmente é radicado em São Paulo (SP). Artista visual, curador, jornalista e poeta, morou e trabalhou com a escritora e poeta Hilda Hilst entre 1991 e 1994, publicou um livro de poesia em 1992, e trabalhou com moda no extinto Phytoervas Fashion, no qual foi coordenador de produção. Desenvolve trabalhos em fotografia desde 1998. Participou de mais de 75 exposições, entre individuais e coletivas, nas quais recebeu três prêmios aquisições; realizou cerca de 15 curadorias e foi tema de Documentário exibido na TV Sesc-Senac. Possui obras em acervos públicos e em coleções particulares. Colaborou para diversas revistas como Caros Amigos, Harper’s Bazaar, Select, Bamboo, Dasartes e Mag!, entre outras, escrevendo sobre artes, arquitetura, design e literatura. Foi coordenador da Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, entre 2007 e 2010, diretor de projetos do Instituto Hilda Hilst entre 2012 e 2014, e curador da galeria online www.conectearte.com.br. Foi coordenador geral dos Centros Culturais e Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, redator do Mapa das Artes São Paulo por 16 anos e diretor adjunto do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Atualmente realiza curadorias para o Atelier Paulista e para a Fundação Mokiti Okada. É colaborador de arte e cultura na plataforma Bemglô, e na revista Continente.