O curador e crítico de arte Ricardo Basbaum já chamava atenção, em 2013, em seu livro Manual do artista-etc, ao fato de a vida também passar a ser considerada um suporte de criação. “Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artistaartista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’ (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc.).” Creio que Moisés Patrício representa esse conceito na arte contemporânea brasileira.
Nascido no Bairro de Santo Amaro, em São Paulo, Moisés é um artista multimídia e arte-educador que traz para sua produção o protagonismo negro, abrigando e refletindo questões sobre arte, política, religião e a própria negritude. Seu trabalho mais conhecido até aqui, a série Aceita?, problematiza a questão da mão escrava no Brasil. Iniciada em 2013, realizada em fotografia, e ainda em processo nela, Moisés faz uma pergunta direta ao observador. E estabelece um diálogo que solicita, de imediato, uma resposta.
Como ele disse certa vez em uma entrevista, “eu começo uma pergunta, se as pessoas aceitam essa condição da mão escrava no Brasil. Então é assim: você aceita? E, a partir dessa pergunta, eu vou fazendo uma foto por dia e publicando nas redes sociais (no Instagram, @moisespatricio) com diversas questões relacionadas à mão de obra, à manufatura, ao gesto. Tudo que está intrínseco ao negro e à mão do negro no Brasil, por mais que as pessoas não imaginem”.
Em sua pergunta – tantas vezes contundente em suas imagens – o artista fala, também e principalmente, dos fazeres manuais existentes no candomblé. Suas fotografias da série Aceita?, além do ato performático em si, trazem algo de pictórico em seu feitio. São fotografias que “discutem”, “conversam” com a pintura, e vice-versa. Nelas, estão em jogo a cor, a composição, o equilíbrio e o contraste, que também se desdobram em outros trabalhos do artista em diversos suportes, como a pintura e a escultura. Moisés provoca, com a série de fotografias, uma reflexão sobre a contribuição intelectual do negro no país. Fala da mão de obra e da manualidade, de mão dada e espalmada.
E aqui me vem um pensamento heideggeriano, quando penso na manualidade na sua produção. Lembro as palavras téchne e poíēsis, que fazem parte do conceito grego de arte. Téchne significa, principalmente, o saber, o conhecer por intuição “da experiência”. E essa intuição gera um saber que provém de um ver originário, ancestral. “É o próprio ver originário, aquele ver que antes de ser já era.” Para os gregos, ver é ser.
Em A origem da obra de arte (que reúne palestras proferidas entre 1935 e 1936), Heidegger reforça sobre as virtudes do manuseio, ao mesmo tempo positivas e desconstrutivas, que são agora atribuídas à téchne dos gregos. Segundo o filósofo, os gregos usavam a palavra tanto para o artesanato como para a arte. Mas téchne não significa propriamente “nem o artesanato, nem a arte, nem, por certo, a técnica no sentido de hoje”. E nem se trata de “um modo de performance prática em geral”. A palavra significa antes “um modo do saber”, no sentido de “recepção do presente como tal / na sua presença”, isto é, de “desocultamento do ente”. O problema da técnica é um tema que ocupa um lugar central na segunda fase do pensamento do filósofo. Vale lembrar que o conceito de coisa, em Heidegger, é o de coisa como instrumento (Zeug). E é no uso dos instrumentos, das mãos, dos pincéis, da máquina fotográfica, que a coisa manifesta-se, na obra de Moisés Patrício, em sua natureza íntima da técnica do trabalho manual, na qual se desoculta a própria instrumentalidade das coisas.
Sua série fotográfica é uma crônica visual que ativa reflexões políticas, pessoais e poéticas no observador, com subjetividade e referências ao candomblé, como se Moisés praticasse um ofertório. Abraçando a tradição ancestral, estendendo a palma da mão aberta, que oferta. Como ele mesmo diz: “São resíduos de relações humanas devolvidos à circulação pelo ato fotográfico. A série Aceita? surgiu durante uma crise criativa, sempre pintei e desenhei, não tinha nenhuma empatia pela fotografia. Um dia, me perguntaram o que tinha de negro na minha pintura, já que eu pintava temas muito deslocados da cultura negra. Depois desse episódio, comecei a me auto-olhar de um outro lugar. Me aproximei do universo da fotografia sob orientação do Iatã Cannabrava. Fiz uma série de fotos do meu corpo até chegar às mãos. Assim que cheguei às mãos, senti que era um bom caminho para refletir sobre diversos assuntos que atravessam minha existência”.
E a descoberta das coisas se dá na experiência da lida cotidiana. O uso das mãos, na pesquisa e na produção deste artista, dessa manualidade, desdobra-se claramente na série fotográfica Aceita? e também nas esculturas coloridas que homenageiam o Mestre Didi, autor de obras que são objetos rituais. Mas esses trabalhos de Moisés, além de trazerem consigo algo de ritualístico, convidam não só ao olhar, mas também ao toque, à aproximação da mão àqueles objetos com textura macia e multicolorida, que, por sua vez, também lembram o tacape, arma usada entre os indígenas para combates próximos ou rituais.
A CASA, O ATELIÊ, O TERREIRO
Tive o prazer de estar em sua casa várias vezes. Ela é seu ateliê, sua egrégora, seu terreiro. Moisés Patrício amanhece, faz um café, conversa com Exu e inicia sua jornada pelo dia. No dia a dia no ateliê, ele pinta atualmente uma série de retratos da sua família de santo e finaliza as obras que estarão em exposição, em breve, na Galeria Estação. A rotina, durante a quarentena, tem sido ligar para os amigos, os parentes, refletir sobre o tema do retrato, mostrar os processos, mesmo que, no momento, virtualmente. Suas referências de obra e de vida, suas inspirações passeiam, como ele mesmo diz, por muitos pensadores e pensamentos.
Parafraseando Walt Whitman, Moisés não abriga uma multidão, mas uma legião que tem Juan José Balzi, Erica Malunguinho, Mestre Didi, Abdias Nascimento, Pai Cido de Oxum Eyin, Emanoel Araújo, Rosana Paulino, Djamila Ribeiro, Baba Sidnei Nogueira, Baba Rodney William, Paulo Nazareth, Hélio Menezes, Fabiana Lopes, entre tantos e tantas. Em novembro de 2019, meses antes do inimaginável acontecer, após uma visita ao seu estúdio, Moisés recebeu o convite da galerista Vilma Eid para integrar o time de artistas de sua galeria. Sua primeira exposição individual estava marcada para o mês de agosto passado, mas, devido à pandemia, foi adiada.
Em uma conversa meses atrás, perguntei a ele sobre a pandemia, o isolamento social, sobre o que ele acha desse novo (a)normal, e como essa situação tem ecoado em sua vida e, principalmente, em sua produção. Moisés foi enfático: “Não acredito que retornaremos tão breve. O que vivemos hoje é resultado de um longo período de equívocos sociais; a exemplo do racismo, que mata pessoas pobres e pretas, na sua maioria, o que ficou evidente com esse momento. A pandemia abriu a caixa de Pandora do mundo e o nosso desafio é encarar com honestidade e reduzir os danos gerados pelo capitalismo. Sigo produzindo lentamente, mas fui afetado profundamente, perdi amigos, espaço físico, oportunidades; enfim, nada de novo no horizonte. Tive que dar uma pausa nas pesquisas para colaborar com meus vizinhos e familiares; aos poucos vou retomando a vida”.
A presença de Moisés no elenco da Galeria Estação reforça o status do espaço como referência em arte popular brasileira, com obras de artistas autodidatas oriundos de várias regiões do Brasil, como Agostinho Batista de Freitas, Alcides Pereira dos Santos, Amadeo Luciano Lorenzato, Artur Pereira, Chico Tabibuia, Cícero Alves dos Santos (o Véio), GTO, Gilvan Samico, José Antônio da Silva, José Bezerra, Maria Auxiliadora e Neves Torres.
Atualmente, a galeria vem incorporando ao seu elenco artistas pertencentes ao circuito artístico contemporâneo, cujas obras dialogam com a criação não erudita, como Dani Tranchesi, Germana Monte-Mór, José Bernnô, Lilian Camelli, Santídio Pereira e o próprio Moisés. Essa incorporação de artistas contemporâneos revitalizou a galeria, que agora oferece um panorama histórico e atual de uma produção que vai além do contexto da arte popular, abrigando nomes que investigam em seus processos visuais, independentemente da formação, elementos da mesma fonte que esses artistas categorizados como “populares”, “naifs” bebem.
FLOYD E A PÓLVORA
Meses atrás, nos confrontamos com o assassinato de George Perry Floyd Jr. nos EUA, gatilho que incendiou a pólvora latente que paira sobre o racismo persistente. Não obstante, ainda nos deparamos com ensejos de uma volta do fascismo. Não podemos esquecer que o nosso país foi um dos últimos a abolir a escravatura. A pandemia mata mais pretos e pobres.
Divagando com Moisés sobre o tema, ele foi assertivo: “Hoje, vivemos a realidade da quarentena provocada pela Covid-19, mas vale lembrar que essa realidade é comum na comunidade afro-diaspórica, vivemos o isolamento social desde o período da escravidão, o corpo preto sempre foi a nossa única casa, sempre flertamos com a doença e a morte. E nada mudou, os corpos eleitos para serem sacrificados são os corpos pretos. A mão que mantém a cidade limpa é a mão preta; a mão que mantém a economia girando é a mão negra; a mão que cuida dos doentes (enfermeiros) é a mão preta; a mão que luta por direitos humanos é a mão preta; a mão que faz boas trocas no mundo é a mão preta”.
Em sua obra, além da crítica ao racismo e à intolerância étnica e religiosa, Moisés também questiona o consumo. Quando ele pergunta se você aceita o que ele oferta, esse ato abriga o querer, o poder, o ter. Ao tratar esteticamente, formalmente e politicamente, em suas obras, de assuntos como o racismo, a religiosidade e questões de gênero, Moisés faz parte do mesmo “corpo político” de artistas brasileiros empenhados em entender a importância da negritude e de resistir às marginalizações impostas pela sociedade que busca silenciar esses corpos. E, só para citar alguns aqui, falamos de Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Paulo Nazareth, Thiago Martins de Melo, Sidney Amaral e Rosana Paulino. Recentemente, Moisés participou de mostras importantes e internacionalmente aclamadas, como a exposição Histórias afro-atlânticas, ocorrida no Masp e no Instituto Tomie Ohtake, ambas em São Paulo.
O SAGRADO
Moisés, de certa maneira, traz com – e para – a sua obra algo que existe para além da materialidade imediata do mundo, traz uma religiosidade. Um sagrado que – como Mircea Eliade afirma em seu livro O sagrado e o profano – existe em oposição ao profano. Entretanto, na obra deste artista, essas forças coexistem, e o sagrado ali se revela ao mundo através de determinados sinais. Nesse livro tão precioso, Eliade estuda a historicidade das religiões por intermédio das hierofanias, manifestações e expressões do sagrado em diversos quadros sócio-históricos e culturais. Para ele, “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história”. Ambos se expressam em complexos arranjos socioculturais, com códigos, crenças, ética, rituais, moral, símbolos etc.
Em uma das trocas de e-mails durante a escrita deste texto, comentei com Moisés sobre a importância de Exu na sua vida e obra, que parece ser incontornável. Cultuado nas religiões de matriz africana, Exu é o dono dos caminhos. Representa o movimento, a comunicação, o princípio dinâmico da vida. É o mensageiro entre dois mundos e, dentre os orixás, é o mais próximo de nós, seres humanos.
Ele pontuou que “como candomblecista e filho do orixá Èsù, tenho como base de pesquisa e produção a filosofia baseada em Èsù. Toda a minha vida e obra estão intrinsecamente ligadas a ele, conceitos como dinâmica, multiplicação, circularidade, troca, ambiguidade podem ser notados na minha vida e obra. Èsù é a divindade mais importante do panteão iorubá, é o orixá da comunicação, da autonomia humana, da sexualidade, da diversidade, da expansão, da alegria, entre tantas outras coisas. A demonização dele está ligada à desumanização do povo preto. Numa sociedade racista, tudo que está ligado ao preto é lido como ruim, e não é diferente com o orixá Èsù, já que ele é o deus mais importante para nós”.
PROFUNDA PELE
A produção de Moisés abarca questões relacionadas à superfície das coisas, da pele, conversando e lançando perguntas, um gesto artístico que nos leva àquilo que o poeta francês Paul Valéry afirmou: “o mais profundo é a pele”. Entre uma palma de mão que oferta e obras que se desdobram em esculturas que convidam ao toque, ao manuseio, pinturas e desenhos, o artista alinha, costura, manipula artisticamente essa liberdade, pluralidade, respeito que a cultura afro abriga e que reverbera mais do que nunca além da cor, das crenças, de gêneros ou raças. Enquanto artista e iniciado nas religiões africanas, ele acredita que a humanidade deve se voltar mais à natureza, aos ritos, que deveríamos ritualizar mais nossa vida, quiçá como uma maneira de contornar ou vencer a saturação que o capitalismo provoca.
“Vale lembrar que, enquanto sociedade, não aprendemos ainda com a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. É bom lembrar que somos parte da natureza. O capitalismo nos deslocou dessa condição básica, e nos colocou como máquinas para produção de valor. Já a cultura milenar iorubá nos traz de volta para aquilo que somos: parte integrante dessa natureza. E que, para que possamos ter uma qualidade de vida coletiva, precisamos nos reconhecer como elos e compartilhar nossas potencialidades para que tenhamos garantido o bem-estar social.”
O trabalho de Moisés Patrício – não só o visual, mas os outros que derivam da sua práxis artística – abriga influências e referências de pensadores, filósofos, ativistas, além de artistas. A filosofia e a literatura atravessam sua produção, sobretudo, como ele pontua: “A filosofia iorubá, a minha produção e pesquisa são fundamentadas nessa cosmovisão”.
Na série Aceita?, bem como em outras de suas produções, como nas mais recentes esculturas, os fazeres manuais, o candomblé, a umbanda, a mistura e as relações entre Brasil e África, a pintura e a fotografia se mesclam. Moisés estabelece relações e diálogos que iluminam o momento pelo qual estamos passando, apontando para o esgotamento da cultura capitalista. “Nos bastidores, a cultura afro sempre dialogou com outras culturas de forma mais equânime. A minha prática artística reverbera essa herança cultural”. Uma prática que caminha, como as de outros artistas aqui citados, de “mãos dadas” com o aqui e agora
* O texto Moisés Patrício | Um convite ao encontro. Aceita? foi originalmente publicado na revista Continente, em setembro de 2020. O registro fotográfico das obras Ìforibale (Adoração), Ìforibale II (AdoraçãoII) e Festejo Yorubá são de João Liberato. Moisés Patrício é artista visual (vive em São Paulo, SP). Trabalha com fotografia, vídeo, performance, rituais e instalações, em obras que lidam com elementos da cultura latina, afro-brasileira e africana. Entre as exposições das quais participou destacam-se: Histórias Afro-Atlânticas, MASP e Instituto Tomie Ohtake, (São Paulo, 2018); Bienal de Dakar no Museum Of African Arts (Senegal, 2016); A Nova Mão Afro Brasileira no Museu Afro Brasil (São Paulo, SP, 2014); Papel de Seda no Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos – IPN Museu Memorial (Rio de Janeiro, RJ, 2014); Metrópole: Experiência Paulistana na Estação Pinacoteca, curadoria de Tadeu Chiarelli, São Paulo – SP; OSSO Exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga, curadoria de Paulo Miyada no Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, SP, 2017); e A pureza é um mito: o monocromático na arte contemporânea, na Galeria Nara Roesler, curadoria de Michael Asbury. Desde 2006, realiza ações coletivas em espaços culturais na cidade de São Paulo, SP.
Jurandy Valença é alagoano, morou e trabalhou em São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro. Atualmente é radicado em São Paulo (SP). Artista visual, curador, jornalista e poeta, morou e trabalhou com a escritora e poeta Hilda Hilst entre 1991 e 1994, publicou um livro de poesia em 1992, e trabalhou com moda no extinto Phytoervas Fashion, no qual foi coordenador de produção. Desenvolve trabalhos em fotografia desde 1998. Participou de mais de 75 exposições, entre individuais e coletivas, nas quais recebeu três prêmios aquisições; realizou cerca de 15 curadorias e foi tema de Documentário exibido na TV Sesc-Senac. Possui obras em acervos públicos e em coleções particulares. Colaborou para diversas revistas como Caros Amigos, Harper’s Bazaar, Select, Bamboo, Dasartes e Mag!, entre outras, escrevendo sobre artes, arquitetura, design e literatura. Foi coordenador da Oficina Cultural Oswald de Andrade, em São Paulo, entre 2007 e 2010, diretor de projetos do Instituto Hilda Hilst entre 2012 e 2014, e curador da galeria online www.conectearte.com.br. Foi coordenador geral dos Centros Culturais e Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, redator do Mapa das Artes São Paulo por 16 anos e diretor adjunto do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Atualmente realiza curadorias para o Atelier Paulista e para a Fundação Mokiti Okada. É colaborador de arte e cultura na plataforma Bemglô, e na revista Continente.